O tabu de FHC

FHC e Dráuzio Varela no Complexo do Carandiru, em SP

Assisti esta semana ao documentário “Quebrando o tabu”, dirigido por Fernando Grostein Andrade. E este filme ratifica a condição de que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso se tornou uma espécie de Al Gore brasileiro quando comprou uma causa polêmica. E não há mal algum nisso.

Ao apoiar a descriminalização da maconha e defender programas de redução de danos, FHC confessa um erro cometido durante sua gestão. Ele assume que, ao seguir a política de tolerância zero dos EUA, o Brasil se manteve atrasado no olhar sobre os usuários. O país ainda enxerga o uso de drogas – diferente do tráfico e do crime organizado – como uma questão de segurança pública, e não como um problema de saúde pública.

O documentário, disponível para locação, foi abafado em muitos setores da sociedade brasileira por desnudar a ineficiência do modelo norte-americano – e seus braços na América Latina, principalmente no México e na Colômbia -, implantado pelo então presidente Richard Nixon, no início da década de 70.

O documentário indica que FHC não está sozinho. Ex-presidentes do México e da Colômbia assumem os equívocos na política de combate ao tráfico. Bill Clinton engrossa o grupo, assim como o médico Dráuzio Varella e o escritor Paulo Coelho, apenas para mencionar às personalidades famosas.

Antes que as vozes adeptas da limpeza social gritem em protesto, é fundamental salientar que ninguém no documentário faz apologia ao consumo de drogas (expressão recorrente do politicamente correto). Não há defesa pela legalização das drogas. O que acontece é uma ponderação sobre as políticas atuais, diante da insistência em um modelo inerte em conter o avanço do tráfico e a multiplicação de usuários.

Os personagens do filme, mediados por FHC, sugerem a necessidade de se separar claramente consumidor de traficante. E compreender o consumidor como um sujeito que, dependendo das circunstâncias, necessita de auxílio do sistema de saúde, e não de uma jaula, onde permanecerá enterrado no vício. Como reforça Dráuzio Varella, há mais de 20 anos atendendo presos e presas no Carandiru, “onde há cadeia, há drogas.”

“Quebrando o tabu” expõe experiências de sucesso em países como Portugal, Espanha, República Tcheca e Holanda na redução do impacto de drogas mais pesadas, como cocaína, crack e heroína. Em todos estes endereços, o índice de contaminação por HIV, por exemplo, caiu mais de 50%. Em 16 estados norte-americanos, a maconha foi aprovada para uso medicinal, o que auxilia no tratamento de certos tipos de câncer e dores crônicas.

Separar demanda de oferta é uma questão social urgente. Testemunhamos a fragilidade da Prefeitura de São Paulo e do Governo do Estado na abordagem dos moradores e freqüentadores da cracolândia. Tratá-los como bandidos reforça o quanto parte da sociedade crê – por desinformação, preconceito e arrogância – que dependentes de drogas representam uma sub-espécie a ser varrida de suas vistas. Ou reunida em guetos cercados por muros e grades.

Santos, que foi pioneira em discutir e aplicar projetos de redução de danos, hoje reproduz o modelo de repressão. No ano passado, parte da classe política tentou negar – a todo custo – a chegada do ox (versão mais agressiva do crack) em pontos de consumo na região. A cidade que abriga pelo menos seis lugares de consumo público de crack não pode virar as costas para o problema como se não fosse com ela. E aí não adianta se esconder no shopping ou na orla da praia para vendar os olhos.

“Quebrando o tabu” nos auxilia a enxergar melhor nossa mania de grandeza, antes que a vida real deixe de rondar a vizinhança e bata à porta, se é que não ignoramos o som grave da mão que soca, em desespero, a madeira.

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