Apanho, logo existo



Por Lia Heck*

Hoje, desejei ser, por um momento, homem.

Caminhava para o trabalho, pela manhã, quando vi uma mulher ser lançada na calçada e um homem pular em cima dela dando-lhe socos e chutes. Minha primeira ação foi atravessar a rua e, assustada, olhar para a cena. 

Vi a mulher tentar se erguer, gritando, com a boca ensangüentada. Olhei a minha volta e todos, na rua, ignoravam a cena. Pessoas mantinham o ritmo da caminhada. Moradores conversavam nas portas de suas casas. Todos como se nada estivesse acontecendo. 

Sem saber o que fazer, continuei a andar e, a cada passo, olhava para trás. Ambos pareciam ser moradores de rua e estavam visivelmente sob efeito de drogas. Fiquei tão atordoada com a cena, mas não tinha como tomar alguma atitude.

Antes de virar a esquina e olhar para trás pela última vez, ouvi dois homens sentados num banco. Um deles dizia: “Ah, tá tão chapada de droga que é por isso que ele deve ter batido nela mais uma vez”.

Pela primeira vez na minha vida desejei ser homem. E bem forte. E atravessar a rua e esmurrar aquele sujeito até ver sangue jorrar da cara dele.

Liguei para o 190 assim que cheguei ao serviço. Descrevi a cena ao policial e ele disse que uma viatura iria até o local.

Ainda atordoada, recebi um “feliz dia das mulheres” de uma colega de trabalho, e foi aí que me lembrei do dia de hoje. E a imagem da mulher estirada no chão com a boca cheia de sangue se repetia em minha mente. Essa imagem povoou meus pensamentos durante todo o dia.

Dentre tantos “parabéns” que recebi pelo “meu dia”, pensei em várias mulheres que rodeiam minha vida: minhas amigas queridas, minha mãe, avós, madastra, irmãs... Pensei também em mulheres famosas,brilhantes, e as que estiveram muito à frente da época em que viveram e que, por isso, pagaram alto preço.

Lembrei até das fúteis e suas taças de champanhe. Lembrei de Maria, e sua dor ao ver O Filho pregado numa cruz. E dentre todos esses pensamentos, lembrei-me da cena vista logo pela manhã. Chorei.

De nada adiantaria ser homem, nem por um momento, e socar aquele agressor tal como ele fez àquela mulher. Além de fazer pior do que ele, não seria pela força que eu mudaria sua consciência. Creio que os dois são vítimas.

Eu vi uma mulher ser agredida. Mas não a considero um gênero, classe, raça ou credo. Poderia ser outro ser humano. Desejei que tudo fosse diferente. Não apenas na situação dela, mas na de outras mulheres, crianças, homens, velhos, negros, índios, gays...

* Lia Heck é estudante de Jornalismo da Universidade Santa Cecília (UNISANTA)

Obs.: No Brasil, dez mulheres são assassinadas todos os dias. A maioria dos agressores são pessoas próximas às vítimas. Pais, irmãos, maridos, namorados, vizinhos, tios, muitos deles livres e impunes.

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