A preservação do santo

O goleiro Marcos, do Palmeiras, anunciou hoje a aposentadoria. O texto abaixo foi publicado, originalmente, em 10 de março de 2010. Republico neste espaço sem alterações e peço apenas o desconto dos nomes datados. O resto permanece, infelizmente, atual. É uma singela homenagem ao melhor goleiro brasileiro dos últimos 15 anos. 

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O goleiro Marcos, do Palmeiras, não é mais o mesmo. Pelo menos, dentro de campo. Mas não pague ingresso, leitor, para viajar na barca sem rumo dos apressados. Marcos é um sujeito de 36 anos, sem – por razões óbvias – os reflexos e a agilidade de quando tinha 26. Ou quando estava com 28, evitando que alemães e outros adversários atrapalhassem a trilha de sete vitórias seguidas e o título da Copa do Mundo de 2002.

A compensação vem pela experiência, pela capacidade de liderança, por saber usar o corpo para evitar gols, sem a necessidade de vôos que mais agradam os fotógrafos do que os especialistas na posição. Este é o caminho sagrado dos goleiros mais experientes. Goleiros fora de série passam por metamorfoses. Evoluem. Viram leitores precisos e independentes da dinâmica de jogo. Tanto que muitos deles terminam – depois da aposentadoria – no banco de reservas, vistos como estrategistas eficientes.

Marcos não está velho ou acabado para o ofício. Ele permanece milagreiro. Os toques sagrados apenas ficaram mais discretos. Temos que nos contentar com um santo menos espetacular, mais singelo e direto nas ações em campo. O goleiro veterano é um sujeito que conhece os atalhos, capaz de trabalhar, por exemplo, com os pés e outras partes do corpo (sinal de que o posicionamento melhorou, pois o goleiro está na trajetória da bola).

O problema, atualmente, é que o Palmeiras se transformou em um time mediano, sustentado por seu goleiro, além dos meias Diego Souza e Claiton Xavier. È – por força de promessas não-cumpridas, picuinhas da política interna e dirigentes que se mostraram comuns – o clube mais fraco dos quatro grandes de São Paulo. Sem os três jogadores, trata-se de um clube pequeno do interior do Estado.

Marcos sempre foi esquentado. É do tipo que os jornalistas, aqueles viciados em análise pontuais, adoram. Repetem as palavras do goleiro, as distorcem nos comentários dignos de boteco para se contradizer sem cerimônia no mesmo dia. É ótimo ter um líder que se importa. O goleiro é uma exceção no futebol, hoje marcado por contratos ignorados, jogadores que beijam múltiplas camisas, escalações de equipes que pouco se repetem e atletas esquecidos no semestre seguinte.

Marcos se importa. Suporta a dor física das lesões. Não diferencia clássicos de partidas contra os laterninhas. Trata o Parque Antártica como um templo, e não como um estádio. Marcos se importa por pensar no futuro do clube. Por se preocupar em formar novos goleiros. Em dar oportunidades a eles. Diego Cavalieri – hoje no Liverpool – é apenas um caso da fábrica de goleiros competentes. O Palmeiras não teve um goleiro ruim desde os anos 60.

É difícil manter-se sereno diante de um time que sua sangue para vencer o Sertãozinho e apanha de São Caetano e Santo André dentro de casa. Qualquer amante perde a compostura diante de um lar remexido por estranhos. Ainda mais se falhou em um dos gols.

Todos os grandes goleiros falham. Engolem frangos espetaculares. O torcedor deve temer os goleiros regulares. Eles serão sempre regulares. Nunca serão péssimos. Nunca serão excepcionais. Não fazem a diferença em momentos importantes. Não asseguram campeonatos quando as estrelas amarelam. Não fazem o atacante amaldiçoar o técnico por tê-lo escolhido para cobrar um pênalti.

Marcos atuou inúmeras vezes no sacrifício e pretende se sacrificar no próximo ano. Qual ídolo você conhece, leitor, que seguiria para o banco de reservas com o objetivo de formar o sucessor? Qual ídolo assinaria contratos de longa data, que prevê um cargo na comissão técnica, sem inflar o ego para comandar o time na beira do campo com pouca experiência?

Marcos sofrerá muito até o final do ano. A torcida, também. A dor não será por causa dele, mas será sentida em conjunto com o goleiro. A catarse será coletiva. A gestão atual do clube escolheu as mesmas estradas viciadas de outras agremiações. A política surrada do bom e barato não me parece suficiente para aproximar o Palmeiras das finais. Os sintomas da desorganização pipocam durante o Campeonato Paulista.

Infelizmente, o Palmeiras não aprendeu com o ano anterior. Perdeu o campeonato por possuir somente um time, e não um elenco. O Campeonato Brasileiro, com 38 rodadas, é longo e exige banco de reservas. Planejamento é fundamental. Ou, pelo menos, não tomar medidas trapalhonas. O São Paulo, com três títulos seguidos, é a evidência física mais cristalina. O Flamengo, em 2009, foi uma exceção, que confirmou a regra dos anos anteriores.

Marcos, o santo, sofrerá como todos que abrem mão de si por uma causa maior. Mesmo com a chance de milagres eventuais, o goleiro tem feridas demais, cicatrizes demais para salvar um clube que caiu na vala comum. E não terminará a carreira por baixo, como desejam os pessimistas. Terminará a carreira onde começou. Há ato maior de amor do que proteger a floresta mesmo quando ela pega fogo?

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