O inglês que perdeu o Natal

Enquanto aproveitava a velhice tranqüila, ele transformou sua propriedade. Ali, plantava frutas e verduras, além de criar várias espécies de animais, alheio à cidade que avançava sobre ele. Mantinha uma vida quase rural, em convivência com o progresso da Santos que se urbanizava rumo à orla da praia, de acordo com o desenvolvimento econômico via Porto e produção cafeeira.

Antes de morrer, deixou como legado a divisão da propriedade em vários lotes. Contemplava os familiares, antes que as mudanças urbanas pulassem a cerca e batessem palmas como se tocassem a campainha. O inglês sentia o cheiro da modernidade, mas jamais imaginaria que o progresso engoliria sua área, beijando a faixa de areia. E que o cotidiano bucólico do interior da Europa seria perpetuado em nome de rua. Ao lado, outra rua eternizaria suas origens.

Robert Sandall (hoje se chama Roberto, na versão aportuguesada) ficaria famoso por outra transformação. A metamorfose ocorre anualmente, com dois meses de duração. A novo visual começa a ser desenhado em novembro, quando um exército de homens e mulheres se armam de escadas, fios e lâmpadas coloridas. É um trabalho de formigas amadoras, remuneradas para outras funções, que resulta em uma alameda onde as luzes assombram de admiração àqueles que perguntam quem foram os designers adeptos da humanidade natalina.

A cada ano, novos cenários e coreografias esculpem as calçadas e fachadas do lugar que, mais de 60 anos atrás, amanhecia ao cantar do galo e atravessava o dia sob a sinfonia de porcos, galinhas e outros bichos. Ali, nada é para sempre. Tudo se adapta, ainda que o tema da obra seja inflexível.

A rua Roberto Sandall, homenagem ao antigo dono do terreno, é uma via comum durante o dia, uma passagem entre duas avenidas na Ponta da Praia, em Santos. Ao anoitecer, vira um microcosmo do horário do rush. A rua fica congestionada pela procissão de carros e motos em baixa velocidade, que transportam motoristas e passageiros boquiabertos pela beleza das luzes dos 14 prédios a compor o bosque de Natal.

A decoração, tradicional há mais de 20 anos, rendeu prêmios simbólicos para a rua. A Roberto Sandall também foi retratada com poesia pela falecida cronista Lydia Federici, em 1994. É um ponto turístico informal, circunstancial, fora dos catálogos oficiais, que surpreende turistas e moradores da cidade, satisfeitos em repetir o trajeto de 300 metros todos os anos. Eles buscam elementos novos, nas árvores, nas pilastras ou nas janelas. Muitos refazem o percurso como anfitriões de convidados de primeira viagem e apontam, com orgulho, os detalhes do patrimônio cultural em transição.

Desconheço como eram os Natais de Robert Sandall. Apenas imagino o breu que deveria dominar as áreas mais periféricas da chácara do inglês. Por mais que iluminasse ou enfeitasse sua casa, Robert provavelmente ficaria de queixo caído ao ver a renovação de seu pedaço de chão caiçara.

Em tempos de festas com exageros de múltiplas ordens, olhar para as luzes da rua Roberto Sandall permite que, por 300 metros, seja possível lembrar o que significam os símbolos que fazem o Natal. Sem custo, sem consumo neurótico, no único congestionamento prazeroso de uma cidade que atropelaria mais uma vez o nobre inglês e sua chácara (hoje) imaginária.

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