O ferro em brasa

Para mudar de assunto – e fugir do tradicional exercício de esculachar alunos -, dois professores resolveram debater a importância do próximo feriado, o Dia Nacional da Consciência Negra. Um dos docentes estava mais exaltado e expunha toda a politização de boutique. Travestido de cidadão indignado com o que considerava uma injustiça, o professor rugia:

— Para que este dia? Por que não temos dia dos brancos, dos amarelos, dos vermelhos? O Dia da Consciência Negra é um ato de racismo.

Como o diploma não traz sabedoria, é possível compreender que tais argumentos beiram um simplismo infantil. Datas comemorativas jamais representam os grupos dominantes. Mesmo que politicamente corretas, estas datas reforçam que ainda vivemos sob o teto do preconceito e da desigualdade, sejam mulheres, negros, índios e outros grupos que não se encaixem no padrão estabelecido como desejável para exercício do poder.

Sempre enxerguei estas datas como um paradoxo. Embora signifiquem bandeira de resistência contra o controle majoritário, elas também mascaram o comodismo de quem finge que um dia desata todos os nós. Ao menos uma vez por ano, retirariam milhões de homens e mulheres do manto da invisibilidade.

Esta semana, o presidente da Fifa, Joseph Blatter, disse que não havia racismo no futebol. Diante da saia justa, desculpou-se, o que não apaga a demonstração de cinismo (no mínimo, alienação) da declaração anterior. Assim como Blatter, muitos por aqui se sentam sobre o mito da democracia racial para defender a ideia de que o Brasil não é uma nação racista, ao contrário de quaisquer dados sócio-econômicos. Viram as costas para as relações mais cotidianas, como o mundo do trabalho ou o sistema educacional.

Vamos pensar só nas crianças, que talvez possam usufruir algum dia de novas relações sociais brasileiras. De acordo com a Unicef, apenas 43% das grávidas negras têm acesso a sete consultas pré-natais, o mínimo aceitável. Entre as brancas, 72,4%. De cada 100 crianças brasileiras, 45 são de família pobre. No total, seriam aproximadamente 26 milhões de crianças. Deste total, 17 milhões são negras. Um bebê negro tem 25% mais chances de morrer antes de completar um ano do que uma criança branca.

O Brasil apresenta, evidentemente, particularidades nas relações raciais. Seria distorção cultural comparar como gêmeos o racismo praticado aqui com o norte-americano ou ainda com o sul-africano. O fato é que o país se esconde do problema quando o torna elemento secundário no debate público sobre as desigualdades brasileiras.

A tendência de desaparecer com o tema se manifesta por dois caminhos. O primeiro é amenizar a situação, como se racismo não fosse violência, seja pontual, seja estrutural, com o aval de governos e políticas públicas. O segundo é acusar os negros de discriminação, como se tal postura os igualasse aos brancos e retirasse o peso da violência cometida no cotidiano.

A ironia reside na exposição dos argumentos contrários. Antes designado ao silêncio absoluto, o racismo no país entrou na pauta de intelectuais e parte da imprensa, que dão ressonância para vozes que negam a discriminação racial. Para esses, 20 de novembro é mais do que uma ofensa. É o ferro em brasa que agora, simbolicamente, marca as costas quase transparentes.

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