A falta de cabelos brancos

O jornalista Ricardo Kotscho, autor de 20 livros, defende a reportagem como caminho para o Jornalismo de qualidade*
Para aborrecer Ricardo Kotscho, a receita não é falar mal do São Paulo, seu time de coração, ou do governo Lula, de quem foi secretário de Imprensa e mantém um misto de visão crítica e amizade. O jornalista de 64 anos eleva a voz quando alguém questiona se a reportagem está morta, em coma por questões financeiras ou restrita a poucos veículos de comunicação.

Para acalmá-lo, basta deixá-lo contar sobre a próxima reportagem a ser publicada. Nem precisa perguntar. A voz se torna serena, escapam palavrões, o velho repórter abandona a formalidade. Renasce o contador de causos.

Kotscho narrou, com detalhes, os bastidores de uma viagem a Barretos, no interior de São Paulo. Sete horas de carro para acompanhar a Festa do Peão daquela cidade, a mais famosa do país. A matéria ainda não foi publicada pela revista Brasileiros, onde é repórter especial. Sairá na edição de outubro.

De um ideia inicial sobre a vida dos milionários ruralistas, Kotscho retornou à São Paulo com a história de Henrique Prata, pecuarista que estudou até os 15 anos e que hoje administra o Hospital do Câncer de Barretos, referência nacional em pesquisa e tratamento da doença.

A história foi contada em um dos auditórios da Universidade Santa Cecília. Kotscho veio a Santos para dividir uma mesa de debates sobre os desafios da profissão com os colegas Armando Pereira Filho (UOL) e Zé Gonzalez (Globoesporte.com), sob os olhares de uma plateia de 150 estudantes de Jornalismo. O encontro abriu a Semana Ceciliana de Artes e Comunicação, que integra o programa de 50 anos da instituição de ensino.

Aos 47 anos de carreira, o jornalista Ricardo Kostcho nunca ganhou tão bem. E trabalhou tão solto. Mas, para que chegasse neste ponto, ele virou comentarista da Record News, escreve para a revista que ajudou a fundar há quatro anos e é blogueiro, hoje no portal R7. “Virei multimídia por necessidade.”

A velha sola de sapato - Além disso, o jornalista está lançando o 20º livro, “A Vida que segue”, coletânea de crônicas publicadas nos últimos três anos na Internet. É a sua segunda obra do gênero. Migrar para o mundo virtual simbolizou a mudança na profissão, que resultou em mais tempo com a família, ausência de vínculos empregatícios e até o abandono da rotina motorizada.

Kotscho trocou helicópteros e aviões na capital federal por andar a pé na capital paulista. Assumiu-se como pedestre de carteirinha, tanto que vendeu o carro na semana passada e não pretende comprar outro automóvel. Promessa publicada no seu próprio balaio, na Internet.

A mudança de vida pós-Brasília, uma cidade que se alimenta de crises, segundo ele, o reaproximou da reportagem, mas não alterou a visão sobre a prática do Jornalismo. “Os novos desafios são os velhos de sempre. Mudam apenas os meios e as terminologias. Não importam o suporte e a plataforma. Sem tesão e vontade, os novos meios (de comunicação) ficam sem função.”

Ricardo Kostcho defende, com veemência, que exerce o Jornalismo da mesma maneira, desde o primeiro dia em que pisou numa redação, no jornal O Estado de S. Paulo, em 1964. Naquele dia, produziu uma matéria sobre vestibular. “A reportagem diferencia um veículo do outro. Jornalismo é descobrir, apurar e contar bem uma história.”

Homens grisalhos - Como leitor, o jornalista se sente incomodado. Para ele, o noticiário peca pela padronização de assuntos. “A impressão que me dá, como consumidor, é que aquela notícia é velha. Mesmo sendo nova, a sensação é de que a li em algum lugar.” É a forma do velho repórter dizer que o jornal só sobreviverá se for “gênero de primeira necessidade”. Palavras dele.

Ricardo Kostcho desconfia – e explica para a plateia composta na maioria por jovens jornalistas na casa dos 20 anos – que as redações redescobriram os homens grisalhos. Muitos portais – uma das razões para o bom salário – resolveram contratar profissionais mais experientes que, segundo ele, podem escrever mais do que 10 linhas ou 140 caracteres. “É fundamental mesclar velhos e novos. Nas redações, faltam cabelos brancos.”

Cego e surdo - Adepto da reportagem como essência da profissão, o velho repórter não demoniza ou crucifica as novas tecnologias. Ele as defende como espaço para matérias mais elaboradas, em convivência harmônica com a notícia mais urgente e curta.

O que o irrita é usar a tecnologia para prender o repórter nas redações, longe das ruas. “É vagabundagem. É impossível fazer pelo telefone. Checar uma informação de última hora, tudo bem. Mas eu preciso ver de perto porque sou meio cego. Preciso ouvir de perto porque sou meio surdo. As deficiências físicas ajudam no trabalho.”

Como argumento, Ricardo Kotscho cita várias vezes o colega José Hamilton Ribeiro, repórter do Globo Rural. Um exemplo: a reunião dos dois para discutir a morte da reportagem, há 30 anos, na Associação Brasileira de Imprensa, no Rio de Janeiro. Por coincidência, ambos se encontraram, no ano passado, na PUC-SP, para conversar sobre o tema.

Kostcho se diverte parafraseando José Hamilton, para justificar que, enquanto se gasta saliva com o falecimento alheio, ambos sobreviveram ao intervalo de três décadas com o mesmo trabalho. E ainda vivem disso. Kotscho, aliás, com maior salário em 47 anos de histórias bem contadas.

* Matéria publicada no Jornal Boqnews (Santos/SP), edição nº860, em 1º de outubro de 2011.

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