O pedido de licença

Costumo brincar, há alguns anos, que sou torcedor licenciado do Corinthians. É uma forma bem humorada que encontrei para evitar aquelas discussões intermináveis – e inúteis – sobre futebol. Debates que normalmente resultam em impasse. O licenciamento repele os amigos da polêmica fácil.
Na prática, estar licenciado me dá a condição de poder me afastar do clube, sem cair na tentação de me aborrecer com ele. O licenciamento também possibilita compreender que se tornou dispensável assistir aos jogos do time. É claro que postura era suscetível a recaídas, principalmente quando a equipe estava no fundo do poço, quando amargava o lodo da série B do Campeonato Brasileiro.
Estar licenciado também me deu o distanciamento adequado para observar e detectar as nuances da trajetória de Ronaldo no Corinthians. Separar, com racionalidade, o jogador do produto, o atleta da mercadoria, o gênio do futebol do fenômeno do marketing empresarial.
Na última quarta-feira, ao assistir a virada corintiana sobre o Atlético-MG, me senti mal. Percebi, em primeiro lugar, que voltava a acompanhar os jogos do Corinthians com uma freqüência maior do que desejava. E a decepção veio na mesma intensidade.
Testemunhava a permanência na liderança, a virada sobre o Atlético, mas pensava o tempo todo: — Que jogo chato!  
O Corinthians não pulsava como, por exemplo, na série B ou em certos momentos da era Ronaldo. Parecia uma equipe contente com suas limitações, que se arrastava em campo. Contentava-se em tocar a bola de lado, fiel à monotonia que permeia os campos por aqui.
Ganhou do Atlético porque o adversário mineiro é um dos piores da primeira divisão. Não senti, à distância, aquela vitória por méritos. Posso ter me enganado, mas a virada atendia à probabilidade do jogo, à ordem natural das coisas. O mais forte venceria o inferior, cedo ou tarde.  
O Corinthians transmite a sensação de que não deseja ser líder. Que ocupa um lugar que não pertence a ele. Que está ali por uma série de circunstâncias; a principal delas, um torneio nivelado por baixo.
O time freqüenta a ponta da tabela desde o início da competição. Venceu várias partidas seguidas, mas sempre aos trancos, no limiar do empate, comportamento reiterado nos últimos confrontos. A equipe não transpira aquela segurança de quem provavelmente vencerá. Para estes, a derrota, quando nasce, é vendida por um preço que poucos podem pagar.
O Corinthians apresenta problemas em todos os setores. Não temos um goleiro confiável. Três já atuaram e nenhum deles merece que os zagueiros deixem a bola passar. A defesa, além de envelhecida, é instável. Desde que William se aposentou, o entrosamento naquele setor morreu. A lateral-esquerda voltou a ser um problema com a venda de Roberto Carlos. Improvisações e garotos não sustentam a ala.
O meio-campo, apesar de um homem na seleção, não abriga gênios, sequer jogadores acima da média. Ralf veste a camisa amarela por razões estranhas. Os demais volantes são comuns, deficiência desde a saída de Christian e Elias. Os meias não provocam admiração. Torço por mais lampejos de Alex. A camisa 10 está vaga desde Douglas, hoje no Grêmio.
Na frente, o time segue viciado, dependente de Liédson. Sem ele, a quantidade de gols cai de maneira substancial. Jorge Henrique é ótimo como coadjuvante. William oscila no entra-e-sai da equipe. Emerson está no endereço errado.
O Corinthians tem um elenco melhor do que os adversários? Não. Pior? Também não. Talvez inferior ao Santos completo, mas o time da Vila segue na perigosa pré-temporada para o Mundial.
Estar na vala comum é dom e maldição para o Corinthians. O dom está na justificativa de que os concorrentes insistem em recusar a liderança do campeonato. Mas até quando? A maldição o acompanha na ausência de qualidade para agarrar para si a tarefa de disparar na frente e definir o torneio.
Historicamente, sabemos que o Corinthians – na maioria das vezes – venceu quando tinha times ruins. Os jogadores sangravam e atropelavam oponentes pela luta. A fragilidade técnica era compensada pela disciplina em cumprir ordens, como soldados dispostos a morrer por uma causa, por um símbolo maior.
Aí reside minha dúvida: esta equipe está disposta a quê? Não vejo sangue nos olhos. Vejo profissionalismo correto, mas falta o tempero que faz as equipes entrarem para a memória dos corintianos e alimentarem a raiva dos adversários, que não vêem a mesma paixão obsessiva nos que vestem suas camisas de preferência.
Talvez o problema seja o sargento, incapaz de espremer a alma de seus comandados. Mas não tenho o hábito de crer que técnicos resolvem tudo. A maior parcela de culpa, de responsabilidade e de méritos está entre os que jogam. O treinador comum apenas norteia o caminho. Não o percorre. Às vezes, funciona como motivador. Pode ser que Tite se encaixe no perfil.
Na dúvida e com pesar, preenchi a papelada de renovação de licença. Com a esperança adormecida – e disposta à ressurreição - no canto dos olhos.

Comentários

Alexandre Marcos disse…
Adorei o post como amante de bons textos, como corinthiano e como torcedor de futebol. Excelente! Parabéns!
Edu Reis disse…
Belo texto! Embora eu ache que o mal já não é mais nem de um time mas sim do futebol brasileiro, acho que os times se concentram muito em ganhar e pouco em jogar, os jogos há um bom tempo são cada vez piores e quando aparecem jogadores dispostos a jogar por prazer são tidos como gênios. A fase do Brasil futebol de ouro parece cada vez mais distante ^^