A folha de louro

Quando está de férias, a insônia vira acompanhante regular dele. Adota como tradição jogar fora o relógio, ato simbólico de uma vida propositalmente desregulada. Estava na casa dos pais, visita rotineira, mas resolveu passar a noite por lá.
Por volta da uma da manhã, elétrico como se estivesse no meio do dia, resolveu fazer uma refeição. Jantar de madrugada não era saudável, mas coerente com seus hábitos ogros.
Abriu a geladeira e optou por comer arroz com o resto de uma carne picadinha. Mais molho do que carne, na verdade. Complementou com queijo ralado, que derreteria no micro-ondas e deixaria o prato com feições mais apresentáveis para o autoengano alimentar da noite.
Depois de um minuto e meio, a refeição estava pronta. Nem esperou chegar ao quarto, para comer em frente à TV. Coerência consigo mesmo faz o homem, pensou. Deu uma garfada na cozinha, desculpa para experimentar se a comida havia esquentado.
Na garfada, veio a folha de louro, ingrediente raro naquela cozinha. Tão incomum que ele olhou por alguns segundos para ela. Era a sobrevida dela, antes de repousar na lata de lixo. A folha aguçou lembranças de um episódio vivido há quase 25 anos, quando era uma criança às portas da adolescência.


Eis aqui a história.
Ele tinha um amigo de infância chamado Marcelo. Marcelo Pimenta, sujeito com nome de tempero. Tinham a mesma idade e a mesma obsessão por futebol. Marcelo foi um grande amigo até os 15 anos, depois se mandou com a família para o interior do Paraná. Lá, montaram uma fábrica de brinquedos educativos de madeira.
Marcelo voltava nas férias para ficar na casa da irmã, que se casou com uma paixão do início da juventude. As idas e vindas duraram até os 18 anos, quando os dois amigos foram cursar universidade. A irmã, para completar o pacote, se separou e foi auxiliar a família na fábrica. Nunca mais se viram.
Quando tinha 12 anos, ele foi convidado para jantar e dormir na casa do Marcelo. Não tinha o hábito de dormir fora e pouco ia à casa do amigo. Almoçava e lanchava na residência de outros amigos, mas eram compromissos eventuais. A casa dele era o ponto de encontro para jogos e comilança. Estava acostumado a receber, e não a desembarcar em territórios inóspitos.
Antes de sair, ouviu um monte de recomendações da mãe. Conhecia as regras de cor, mas sabe como é: mãe nunca se lembra de que já disse aquilo um dia. Ou prefere esquecer de que o destino é ser repetitiva. Por isso, ele preferia entender o replay como um ato de amor.
Chegou à casa do Marcelo faminto. Depositou a mochila em qualquer lugar, cumprimentou a todos e, ao ouvir o convite da mãe dele, sentou-se à mesa. Não se lembra exatamente do cardápio. Recorda-se de que ela servira feijão e arroz, itens fundamentais para a ocasião.


 
Os moleques avançaram no feijão e no arroz. Depois de algumas garfadas, o visitante percebeu uma linha fora do roteiro. No meio do feijão, uma folha de louro. Para não dizer meias verdades, descobriu o nome da folha no dia seguinte. Naquele momento, era uma folha no meio do feijão.
Lembrou-se das recomendações da mãe:
— Diga por favor e obrigado. Não coma muito nem faça bagunça. Se colocou no prato, coma. Não faça desfeita de deixar comida, hein?
O que fazer com aquele bicho estranho? Nunca vira uma folha no feijão. Se deixasse de lado, denunciaria que não gostava ou desconhecia aquilo. E também descumpriria as regras de educação. Imaginou que seria algum tempero específico do Paraná, local de origem da família Pimenta.
Aos 12 anos, precisava tomar uma decisão rápida. Se perguntasse à mãe do Marcelo, poderia cometer uma gafe. Gafe, nessa idade, significava ser zoado por meses, talvez anos. Ou parecer sem educação.
Marcelo era carta jogada fora. Se eu não sei, ele também não deve saber, pensou. Silêncio como saída. A folha estava ali, no prato, por alguma razão. Se estava no meio do feijão, a tarefa era comê-la.
Colocou a folha de louro na boca. O feijão foi embora logo. A folha insistia em dançar entre o céu e a garganta. Mastigava e a danada não descia pela goela. Colocava mais feijão na boca. Ele seguia o caminho e a folha permanecia ali. Goles de refrigerante eram inúteis.
Foram cinco minutos de agonia. Fingia interesse no papo, mas a folha era o centro da vida. Suava para manter a pose de quem estava adorando o jantar. De fato, a comida era deliciosa, exceto pela intrusa verde, envernizada pelo molho amarronzado.
Pensou em cuspi-la discretamente no guardanapo. Pensou no risco de ser flagrado. Não queria ser visto como caipira. Era rato de praia, caiçara do litoral paulista. E, na arrogância dos 12 anos, se julgava melhor que os interioranos do “r” puxado.
Cogitou abaixar a cabeça como se apanhasse algo no chão. Assim se livraria da folha. Ponderou que, no dia seguinte, a mãe do amigo varreria a cozinha e descobriria a prova do crime.
Decidiu abandonar a frescura. Se a folha estava ali, era para ser devorada. Ele era o desavisado. Mais um pouco de feijão e pronto: triturou a maldita e engoliu a seco. O resto da noite seguiu como previsto.
No dia seguinte, ao retornar para casa, ouviu o interrogatório de sempre sobre comportamento. Respondeu de forma protocolar e, no final, acendeu a dúvida. Por que o feijão deles tem folha e o da mãe não?
A mãe começou a rir, descreveu a espécie em questão e informou que também usava folha de louro como tempero. Apenas a retirava antes de servir a comida.
Hoje, 25 anos depois, a folha reapareceu em seu prato. Teve destino certo, sem culpa, sem arrependimentos. Desde o jantar nos anos 80, toda vez que depara com uma das irmãs daquela folha, perdida no prato ou na panela, ele entende por que os detalhes desnudam o todo, irrecuperável e nostálgico.

Observação: Texto de ficção publicado originalmente no site Jornalirismo.

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