O braço estendido


A senhora de 70 anos levou o recado ao pé da letra. Estava em uma faixa de pedestres, não havia semáforo e, com o trânsito movimentado, perdera a perspectiva de atravessar a avenida Pinheiro Machado. Lenta ao caminhar, ela estava atrasada para um compromisso. Avançou um passo na rua e estendeu o braço direito.

Um motorista também cumpriu o recado à risca. Parou o veículo para que a mulher pudesse cruzar a avenida. A generosidade virou problema. Logo atrás vinha outro carro. O segundo motorista não percebeu a pedestre e não brecou a tempo. O saldo foi uma colisão entre dois veículos, sem feridos. A senhora, com medo, chegou à calçada oposta, seguiu seu caminho e desapareceu, enquanto os dois motoristas discutiam sobre o prejuízo material.

A história, relatada por taxistas, é uma exceção, mas serve para ilustrar possíveis conseqüências da campanha Faixa Viva, implantada pela CET, em Santos. A proposta em si, obviamente, não causa acidentes, mas gera a dúvida se motoristas e pedestres estão preparados para abandonar a selvageria que norteia o tráfego na cidade em vários momentos do dia.

Conversei com uma dezena de taxistas, todos com adesivos da campanha em seus carros, nas últimas duas semanas. As conversas foram isoladas, durante o trajeto de uma corrida ou no ponto. Todos elogiaram a ideia, mas pediram alterações estruturais no trânsito.

O curioso, no entanto, foi a resposta para a nova relação com pedestres. Os taxistas apenas paravam para idosos e reclamaram que muitos deles entendem que podem estender o braço em qualquer lugar, inclusive fora da faixa. Esta mentalidade indica que a campanha não é suficiente para redesenhar comportamentos. Ficou cristalino, pelos depoimentos, ainda que sem base científica, mas com experiência cotidiana, que os motoristas pararam seus veículos por causa da aparência dos pedestres. Neste raciocínio, jovens podem esperar mais um pouco ou procurar outro lugar para cruzar uma rua.

A Faixa Viva, de maneira isolada, tende ao esquecimento. São necessárias políticas públicas mais agudas e duradouras para modificar o tráfego. Ou evitar o caos nas principais vias da cidade. Endereços como as avenidas Conselheiro Nébias e Ana Costa entopem em horários de pico, sinal de que o cenário começa a adoecer com gravidade.

Por trás disso, persiste a mentalidade do culto aos automóveis. É difícil ir contra o crescimento no número de carros nas vias públicas. Santos está entre as três cidades do país, na proporção, com mais veículos por habitante.

O automóvel se transformou em um dos termômetros do desenvolvimento econômico, além de representar – para o consumidor – símbolo de ostentação e ascensão social.

A Prefeitura não pode, sozinha, alterar o quadro que caminha para focos de paralisia no tráfego. Mas é fundamental colocar o problema na agenda pública, atraindo a sociedade civil para o debate. Discussão de fato, não como ocorreu com o Plano Diretor, em que entidades receberam a coroa de Rainha da Inglaterra, enquanto a Câmara aprovava 100% das propostas do Poder Executivo. Um das ideias recusadas foi justamente a que previa planejamento do setor de transportes a longo prazo.

A Faixa Viva necessita de irmãos para sobreviver como ícone de um novo comportamento. Caso contrário, será abandonada como órfã, assim como o mutirão da carona, outra iniciativa da CET, chacota entre os que se lembram dele. Hoje, a Faixa Viva reforça o coro dos descrentes, que repetem a piada enquanto dirigem suas armas: a melhor maneira de perder o braço é estendê-lo nas ruas e avenidas de Santos. 

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