A marcha ficou careta?

O sinal verde do Superior Tribunal Federal (STF) para a realização da Marcha da Liberdade deu o efeito que os adversários esperavam. A marcha, que aconteceu em vários lugares do país, sendo 11 capitais, ficou entorpecida, esvaziou. Infelizmente, virou só nota nos jornais de domingo.
Em São Paulo e no Rio de Janeiro, não reuniu mais de 3 mil pessoas. Em Santos, no litoral de SP, apenas 30 pessoas se encontraram na praça da Independência, uma das principais da cidade.
Ao autorizar a marcha, o STF matou o caráter principal dela. A marcha existe como enfrentamento social, como contestação de comportamentos repressores, capaz de convocar e aglomerar diversas minorias e/ou grupos sociais. A marcha exige liberdade, jamais tutela do poder. Na teoria, o protesto serve para reivindicar a possibilidade de pensar sem controle das instituições e de se rediscutir convenções sociais.
Por que, então, se reunir para exigir liberdade se, juridicamente, ela foi concedida? É claro que a marcha representou uma resposta contra a violência policial ocorrida em maio, na Marcha da Maconha, em São Paulo. Mas o caráter proibitivo se perdeu quando os próprios policiais ficaram amordaçados diante dos manifestantes. As autoridades e seus cães ladravam, mas não podiam morder. Ninguém deseja pancadaria, mas o aspecto transgressor se desloca para a neutralidade perante a inércia da autoridade presente.
A marcha, como qualquer forma de protesto, tem que nascer da sociedade civil, das pessoas que se sentem indignadas por qualquer problema social. E tem que surpreender os homens do Estado, levá-los a tomar medidas desesperadas ou impensadas que se transformarão em um tiro nos próprios pés. A manifestação se constrói a boca pequena, no um a um, nunca com a mediação de quem existe para tentar extingui-la.
A Marcha da Maconha, no último mês, exemplifica esta postura. Policiais, quando agridem manifestantes, reforçam a própria imagem de truculência, consolidam a acusação de despreparo para lidar com eventos de contradição ao poder.  E dão a razão para quem exigia direitos por meios pacíficos.
No momento em que uma marcha recebe o aval o poder, cai na armadilha da previsibilidade. Torna-se mais um evento com alvará do Poder Público, com espaço delimitado, com tempo definido. O trânsito é organizado, a imprensa é avisada pelas assessorias de comunicação, a marcha entra no calendário do final de semana. Quem deveria ser ignorado ganhou passaporte para atuar como co-organizador.
Protestos só funcionam quando se equiparam a greves de serviços essenciais. O objetivo é interferir na rotina da cidade, fazendo com que os gritos de mudança sejam ouvidos em diversos segmentos, ainda que provoquem rejeição. Neste cenário, a pior reação é a indiferença.
Interferir no cotidiano da cidade implica balançar o senso comum, provocar o cidadão que segue robotizado no cotidiano. Fazer com que ele tome uma decisão sobre o que vivencia à revelia, seja pensar um pouco a respeito do problema, tomar ciência ou reclamar para si mesmo. Isolar um protesto é reduzi-lo à badulaque no espaço urbano.  
A autorização do STF, mesmo que carregada de boa intenção, favoreceu a “turma do bem”, com suas feições de horror cínico e seus murmúrios discordantes das causas que envolveram a marcha. Os senhores do Judiciário cristalizaram a posição dos conservadores, seguros para dizer que o vazio nas ruas e praças indicou que a sociedade é contrária à palavra de quem protesta.
O foco, apesar das várias causas incluídas no pacote, ainda reside na legalização da maconha. O esvaziamento do protesto recarrega o cartucho de quem deseja enterrar o assunto. Desinformar é a munição. O tema, de saúde pública, perde impacto para o discurso de repressão, com alicerces na segurança pública e no moralismo que generaliza (e reduz) o debate.   
A marcha ganhou a liberdade de voz e de caminhada. Mas quem está disposto a ouvi-la e andar com ela?

Comentários

ailton martins disse…
Discordo. É triste ver a quantidade de gente que compareceu, faltou foco e articulação, porque independente de ter sido liberado pelo STF ou não, o objetivo daria direção, essa história de liberdade liberada destruiu o caráter, sei lá, não muda muito, seria bom pra engrossar o discurso e puxar a massa na rua, e sabe lá se isso iria de fato acontecer. O que faltou são os apontamentos, afinal que liberdade é essa que nós ganhamos? Aposto que se engrossar esse coro a repressão cai em cima. Mas há de se considerar que é uma garotada que ta motivada pelo cyberespaço, o que não ilegitima. Algo precisa ser feito! Enquanto intelectuais, movimentos, sindicatos, estudantes... A Turminha do sabe tudo ficar só analisando conjuntura e criticando, no fundo tão só contribuindo mesmo pra desinformação como vc citou, dentro dessa marcha da liberdade, bandeiras de lutas é que não faltam. Mas quem está disposto a ouvi-la e andar com ela?