Ceni e a moça abandonada

O atacante Fernandinho deitado perto da área do Corinthians, aos oito minutos do segundo tempo, acendeu o sinal de alerta. Era o lugar perfeito para o goleiro Rogério Ceni, do São Paulo, cobrar uma falta. Lado esquerdo da área, que exige um batedor destro. Três metros da linha, que coloca a barreira dentro da grande área.
Quando vi Ceni correndo em direção à bola, torci pela primeira vez na vida contra o goleiro. Como corintiano, sempre admirei Rogério por representar uma linhagem de líderes de luvas, que se perdeu em meu time depois da saída de Ronaldo. Como corintiano, percebi que o cenário estava desenhado para se estabelecer marcas históricas, para criar mais um estigma contra meu clube de coração.
Rogério poderia fechar o gol, o São Paulo poderia quebrar o tabu, mas jamais marcar o centésimo gol de sua carreira, ontem à tarde, em Barueri. Que ficasse para a rodada seguinte ou contra qualquer time pequeno do interior. Em clássico, o ferro em brasa arde mais e deixa cicatrizes mais profundas.

A ironia é que me senti penalizado por Julio Cesar por poucos segundos. Ao ver Ceni tirar a camisa e comemorar como um juvenil, minha admiração pelo goleiro do São Paulo não só foi reforçada, como cresceu. Jogadores como ele estão em vias de extinção, aparecem em todas as listas de preservação ambiental do esporte.
Dizer que Rogério Ceni merece ser lembrado pelos gols e por jogar bem com os pés é de um reducionismo infantil. São particularidades que o diferenciam, mas o goleiro conseguiu jogar duas décadas em alto nível, o que o colocaria em qualquer prateleira de craques da posição. Ceni sabe que é diferente, mas jamais se acomodou na arrogância que enterra os jogadores-celebridades. A disciplina mantém o jogador em atividade sem depender de misericórdia do clube ou do nome para ser titular.
Rogério esteve em duas Copas do Mundo. Pagou o preço da injustiça da história. Nasceu na época errada, com muitos craques de estrada curta na seleção brasileira. Começou quando Taffarel era absoluto. E alcançou a maturidade com Marcos em pleno processo de canonização e Dida como um dos melhores goleiros do planeta. Mas isso não invalida ou minimiza a qualidade do trabalho de Ceni.
O goleiro prima por qualidades específicas da posição. Domina os fundamentos básicos e os aplica em conjunto, o que o permite jogar com regularidade. Além de ser mestre na reposição de bola, que mescla precisão e velocidade, ele entende que o goleiro é um corpo inteiro, e não somente duas mãos protegidas por luvas.
Como os grandes goleiros, Ceni defende com os pés, joelhos e outras partes do corpo, sinais de quem tem consciência de que posicionamento é quase tudo. Isso faz com que não seja um goleiro-voador, espécie comum em saltar para defender qualquer bola, mesmo que esteja em cima do goleiro.
Ceni também jamais poderá ser tachado de “mão-de-pau”, expressão que define os goleiros rebatedores. Santos e Corinthians tiveram profissionais deste tipo em um passado recente. Goleiros que soltam todas as bolas e mascaram este defeito com saltos circenses sem sair do lugar. Enganam somente os leigos, que os consideram elásticos ou ágeis.
O goleiro do São Paulo apresenta outra qualidade que deveria ser inerente à posição. O goleiro é o único sujeito que tem o privilégio de ver a dinâmica do jogo por inteiro, por não estar diretamente envolvido nela. Este distanciamento dá a ele a obrigação de ser sábio na orientação dos zagueiros, laterais e volantes e reconhecer as variações táticas de uma partida.
O goleiro, com esta visão, é a extensão do técnico dentro do campo. Muitos dos arqueiros viram capitães e se transformam em bons técnicos após a aposentadoria. Mas isso implica em liderança e senso de coletividade. Ceni comanda defesas, o que é muito diferente da postura de goleiros escandalosos, que se resumem em berrar e deixar seus defensores mais nervosos.
A liderança de um goleiro é comprovada pela capacidade – dentro das tensões de uma partida e do pouco tempo para a tomada de decisões – de apontar as deficiências, expor possíveis soluções táticas ou técnicas e reconhecer as próprias responsabilidades nas mesmas circunstâncias.  

Ceni demonstra outro tipo de comportamento que me agrada, como sujeito que acompanha futebol. É interessante ver como jornalistas são paradoxais nas coberturas. Os repórteres costumam reclamar que jogadores respondem às perguntas de maneira padronizada, mas se apressam em estigmatizar de “polêmico” o atleta que fala claramente, com articulação e que, acima de tudo, compreende que a entrevista se constrói pelo diálogo, e não por dois monólogos.
O goleiro do São Paulo analisa o jogo como poucos e se transforma automaticamente em um concorrente para jornalistas e comentaristas que se agarram em fatos, sem compreender as estruturas que os sustentam. Rogério não se furta em questionar as bobagens ditas em programas de mesa redonda, especialmente os que se assemelham a bate-papo de boteco, ou em coletivas de imprensa, quando a pergunta ignora fatos anteriores ou despreza o olhar em perspectiva.
Lamento que o Corinthians tenha sido carimbado pelo goleiro do São Paulo com o centésimo gol. Mas fico contente em ver que o futebol ainda tem espaço para atletas que sabem aliar amor à camisa e profissionalismo. Rogério Ceni é daqueles que não precisam beijar a camisa o tempo todo para dizer o quanto amam o clube que defendem. Provam seus sentimentos com atitudes antes, durante e depois de um jogo.
Rogerio Ceni é uma ave rara, destinada a um único endereço. Sempre duvidei dos jogadores que dizem amar para o resto da vida a moça que acabaram de conhecer. Esses, cedo ou tarde, voam para outras bandas ao primeiro canto que lhes seduz, sem se importar onde fica o ninho, desde que a ração seja atraente.    

Comentários

Renato Silvestre disse…
Grande Marcão...
Uma das melhores e mais sensíveis análises que já li sobre o fato. E olha, que como bom sãopaulino, já li várias textos sobre o centésimo do Rogério Ceni!!!
Lucas Moura disse…
Muito bom, Marcão!
Dizer que o texto é otimo é chover no molhado, mas mais uma vez você soube expressar o que quase nenhum comentarista sabe fazer. Não apenas exalta o grande goleiro que é o Rogério, mas também saber dar a ele as congratulações mais que merecidas.
Renato e Lucas, muito obrigado pelos generosos comentários. Grande abraço!!
Mauricio Thomé disse…
E ae professor :D

Tenho acopanhado seus textos, mas logo que vi o titulo deste fiquei um pouco ressabiado e pensei comigo: "- Será que ele vai falar mal sobre o Rogério só porque ele é corinthiano?!"
E como uma boa surpresa vi que o titulo fez sentido junto com o texto.
Realmente muito bom! :D Abraços!