A camisa 10, em coma induzido

 
Tinha feito a lição de casa. Li sobre a seleção brasileira antes do jogo contra a Escócia, aquele tipo de amistoso que recupera a boa imagem, a auto-estima e engana os mais apressados. Quando liguei a televisão, o jogo estava com cinco minutos. Ao me acomodar no sofá e olhar para a tela, estranhei. A imagem mostrava um atleta baixinho que dominava a bola perto da área escocesa e erraria um passe na seqüência. Minha primeira reação foi: 

— Quem é esse cara?

Foram três, quatro segundos de incerteza. A memória falhou e se transformou em agonia quando vi que ele corria com o número 10 às costas. Primeira partida como titular e ganha de presente o número dos iluminados?

Passei a acompanhar parte do jogo procurando pelo camisa 10, Jadson, que atua na Ucrânia. Provavelmente nervoso pelo peso que carregava, o meia se equivocou em passes seguidos, chutou fraco quando esteve à frente do goleiro da Escócia e terminou o primeiro tempo escondido na ponta direita.

Cada vez que a câmera focalizava o banco de reservas, eu procurava pelo substituto, por aquele que salvaria simbolicamente o cargo de camisa 10 no segundo tempo. Torcia para que sofresse de cegueira temporária.

Quando a câmera se deteve por mais tempo nos jogadores, senti-me derrotado, embora o Brasil ganhasse naquele momento por 1 a 0. O reserva imediato era Renato Augusto, do Bayer Leverkusen, que estreou no amistoso anterior com o mesmo número às costas.

Tive vontade imediata de escrever para o técnico Mano Menezes e, de certa forma, o faço neste momento. Ele tem ideia da heresia que comete com o número que simboliza parte substancial do futebol a partir da metade do século passado? São compreensíveis e aceitáveis mudanças sucessivas numa fase de transição, mas sinto que há abuso de poder quando jogadores ainda sem estrada e sem o dom do centro do palco vestem a camisa 10.

Qualquer time que se respeita, do bairro à seleção, do futebol de botão ao clube globalizado, sabe que a camisa 10 é concedida ao homem que se diferencia dos demais. Ao sujeito que terá a responsabilidade de decidir a partida nos detalhes imprevisíveis aos mortais. Ao jogador que entende seu papel como único, não exatamente o líder, mas o que muda a história do jogo, mesmo que seja a pelada na praia do domingo à tarde.

A troca de escolhidos para a 10 é o mais agudo sintoma de escassez de talentos no Brasil. A camisa parece destinada ao setor de Recursos Humanos, que resolveu testar vários candidatos com currículos semelhantes. O cargo não é para os semelhantes; pelo contrário, é para o currículo que encabeça a pilha. 

As dúvidas de Mano Menezes nos entorpeceram a ponto de virarmos dependentes de dois jogadores, nomes citados a cada ausência, a cada passe errado do substituto amaldiçoado.

Somos devotos de Kaká, que sofre com seguidas contusões desde a Copa do Mundo. E sonhamos acordados, à beira do desespero, com Ganso, que ressuscita na Vila Belmiro a mágica dos meias clássicos, que enxergam os alvos e os espaços que só visualizamos depois do acorde tocado em ouvido absoluto.

Este vício é, paradoxalmente, saudosista e futurista. Kaká vai entrar na faixa dos 30 anos, o que implica menor velocidade, menos força física e maiores possibilidades de contusões. Não teremos mais o meia melhor jogador do mundo. Kaká terá que se adaptar. Transformar a idade em experiência. A velocidade em atalhos. O físico deteriorado em visão ampliada do cenário à frente. Ele dá a impressão de que compreende a metamorfose e que pode sobreviver em alto nível até 2014. Seria, de qualquer modo, outro Kaká.

Ganso ainda é jogador de clube. Pior: ainda é jogador de clube brasileiro. Uma temporada excelente, instantes de gênio, olhar único são insuficientes para projetar mais três anos? Tostão, por exemplo, defendeu recentemente que um craque só merece este título quando atua vários anos entre os melhores. Instabilidade é prerrogativa dos bons jogadores. 

Ganso personifica o desejo de recuperar uma dinastia de mestres de doutrina única. O problema é que os desejos podem se tornar fantasias. O meia do Santos jogou somente uma vez pela seleção brasileira, em um amistoso. Ainda representa uma imagem distorcida. Significa mais uma necessidade do que um fato concreto.

Se os dois atuarem como se espera, a camisa 10 sairá do coma induzido. Sem um deles, o risco aumenta e a conduz novamente à UTI, dependendo das circunstâncias. Os atletas testados, até o momento, comprovaram que não estão prontos. Timidez é pecado imperdoável para o personagem principal, mesmo que o protagonista entenda que deve seguir para a sombra para um atacante ficar no centro. Mas, para ter consciência disso, é preciso ter clareza da própria condição única.

A seleção brasileira oscila como qualquer time em fase transitória. Os goleiros são seguros. Os zagueiros e laterais, confiáveis e com experiência nos principais times do mundo. Mano Menezes matou, por enquanto, os volantes adeptos da truculência em troca de meias enrustidos, mais técnicos e versáteis. O técnico pode ficar tranqüilo sobre um dos atacantes. De Neymar a Nilmar. De Robinho a Pato.
Faltam dois problemas que insistem em incomodar, a cada amistoso. O camisa 10 é um deles. O outro é o nove, o velho centroavante. Este cargo, desde Ronaldo, também está vago. Mas é assunto para outra conversa.

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