Devorava um romance sobre terapia quando duas
expressões me causaram aquele efeito valioso: paralisar a leitura. “A arte de
ser interessante” e “a arte de se interessar pelos outros” serviam para
explicar a ditadura da aparência que escraviza muitas mulheres.
Mas as expressões, como qualquer palavra
publicada, permitem interpretações de acordo com o olhar particular do leitor.
No meu caso, as duas artes me cutucaram sobre o estado atual do jornalismo,
prática que abracei profissionalmente há quase 18 anos.
O Jornalismo, como qualquer atividade
humana, se sustenta em certas premissas que podem alcançar o nível de
intocáveis. Mas tais pontos de partida dão lugar, em certas ocasiões, à máxima
“faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”.
O problema se instala no momento em
que esta frase popular ganha traços de regra geral. Esta inversão transforma os
seguidores das premissas clássicas em pregadores no deserto ou em anciões com
discursos incompreensíveis.
A exclusão dos pregadores – cedo ou
tarde – revela os pés de barro da profissão. São as premissas que mantém a
atividade viva em sua essência, pulsante em seu papel coletivo. Contratos
comerciais, estratégias de entretenimento, chefes e nosso ego pretensioso são
obstáculos cujo tamanho aumenta ou diminui pela maneira com que os jornalistas
lidam com estes fatores. E pelo grau de decência, claro. Até para sucumbir a
pressão, existe o ilusionismo de quem finge concordar com ela.
O fato é que muitos de nós,
jornalistas, estampamos “a arte de ser interessante” no peito e relegamos “a
arte de se interessar pelos outros” para o bolso de trás da calça. Como se
fosse possível que ambas não estivessem conectadas de forma umbilical, como
gêmeos que se completam e se nutrem da mesma fonte.
A segunda expressão do romance é o
combustível que conduz à primeira. Jornalistas deveriam ser sujeitos que, para
preservar a própria inteligência, se interessam pelos outros, por suas
histórias, deslizes, anseios, dores, alegrias, além das relações com o mundo e
seu cotidiano.
O repórter é um terapeuta purista sem
divã, como um atendente dos serviços de apoio da madrugada, proibido de alterar
– grosseiramente – o curso do sofrimento. Redesenhamos em conjunto, pois estar
do outro lado da linha é a certeza de continuidade da narrativa. Somos
cúmplices, com envolvido profundo; nunca os mentores do crime.
Jornalistas viraram papagaios surdos
de megafone. Jornalistas gastam saliva demais. E dizem pouco. As reproduções de
opiniões alheias se multiplicam num estelionato de argumentos em que ninguém –
no final da novela – assume o que disse.
Os discursos são quase todos
parecidos e quem tenta ser voz dissonante recebe de brinde um ponto vermelho na
testa. Ser alvo não representaria um ferimento a ponto de incomodar, pois é
inerente ao conflito de perspectivas e valores.
A crueldade reside na
desqualificação pública do indíviduo, e não de seus argumentos. Jornalistas,
neste ponto, assistem de camarote ao remédio virar veneno em suas próprias
veias. Uma visitinha nas redes sociais serve para indicar como os jornalistas
se machucam na própria maledicência.
A conseqüência disso é que muitos de
nós apresentam pouco ou nenhum interesse no que o outro pretende ou poderia
falar. As histórias precisam, em muitos momentos, de um arqueólogo ou de um cirurgião,
alguém disposto a cavar fundo, com intervalos, para alcançar o passado ou os
relatos antes escondidos que o outro julgava monótono ou anônimo demais para
uma apreciação pública.
Jornalismo começa pelos ouvidos e
pelos olhos. A boca é um serviçal que aguça os dois (ou melhor, os quatro). Lembro-se
do que disse no ano passado o escritor Rubem Alves. Para ele, muitas pessoas
necessitam com urgência de cursos de Escutatória, em vez de sacralizar a
oratória.
Nós, jornalistas, estamos confusos.
Misturamos a nossa missão de contar e contextualizar com falar demais. E
perdemos – neste surto egocêntrico – o interesse pela casa do vizinho. Os
relatos se tornaram mecânicos, inclusive, porque a forma de descobri-los se
tornou industrial. Lustramos os vidros da janela do quarto todos os dias sem
cogitar abri-la.
Não ouvimos. Fingimos escutar.
Entramos numa conversa com o pensamento na próxima ou em como enquadrar a fala
do outro em aspas, conformes e segundos. Assim, fragmentamos o raciocínio do
interlocutor e o amaldiçoamos em pílulas de declarações.
Os mais velhos diziam que os
jornalistas novos não ouvem respostas porque pensam sempre na próxima pergunta.
Queimaram a língua de tanto tagarelar lições e acabaram enquadrados no
ensinamento-clichê.
Qualquer revista ou edição de domingo
de jornal ainda mantém – mesmo que numa salinha no porão - os jornalistas que
se interessam pelos outros. São aquelas matérias em que o leitor deixa a
catarse quando o ponto final do texto nasceu diante dos olhos dele.
Ali, naquela reportagem perdida no
meio da sopa de letrinhas, não há prazer maior do que perceber alguém com
ouvidos atentos e sensibilidade suficiente para pular o muro do senso comum que
robotiza os conteúdos tão padronizados quanto o cardápio de uma lanchonete
fast-food.
Não se interessar pelos outros afeta
a outra expressão. A esquizofrenia que cegou parte dos jornalistas se manifesta
pela distorção de “a arte de ser interessante”. Somos interessantes pelo que
fazemos, jamais pelo que dissemos que fizemos ou faríamos.
Na era das celebridades-instantâneas
e do marketing pessoal, o jornalista moeu a imagem que aparece no espelho. E
trocou seu nome por outro que rima. Jornalistas passaram a se comportar como
artistas, em versão morto-vivo. Reduziram “a arte de ser interessante” ao rosto
iluminado por câmeras ou aos autógrafos concedidos em corredor de shopping.
Ser interessante é bem diferente da
popularidade. Jornalistas nasceram para as sombras dos fatos. Reconhecimento é
fenômeno eventual. São as cicatrizes das histórias que realimentam a próxima
pauta e amadurecem o contador. Apenas as marcas na pele podem quebrar certos
preconceitos e nos colocar no mesmo patamar dos outros, fundamental para
qualquer diálogo.
É doloroso para muitos colegas, mas
o jornalista tem os limites do entregador. Se cruzar a fronteira, crescem em
proporção geométrica os riscos de virar uma caricatura de si mesmo. Quantos
sujeitos na TV abandonaram o Jornalismo e, por metamorfose, são hoje
personagens, com todo o grau de artificialidade das mentiras que vomitam? Estes
personagens não interpretam ouvir como confirmar teses?
Reclamamos que o público não se
interessa pelo que produzimos. É a resposta para quem os olhou sem enxergá-los.
É o troco de quem não se vê naquilo que entregamos a eles. Menosprezamos a
inteligência alheia ao mastigar suas histórias, sem sabor e tempero, em textos
de telegrama.
A sabedoria do leitor está na
simplicidade da premissa ignorada por nós, jornalistas: “a arte de ser
interessante” só se materializa após o cultivo de “a arte de se interessar
pelos outros”.
A reportagem, quando impregnada pela
sensibilidade dos ouvintes, é a colheita que legitima esta conexão.
Comentários
Esse é o jornalismo que desejo, o quarto poder, que manifesta as situações, que escuta a população e principalmente as fontes e fala, toca na ferida!! Não o jornalismo comercial, submetido e conveniente!!
Jornalismo é e sempre será uma missão, a fama, o flush e os autógrafos são consequências de bons trabalhos e muita ralação!! Não se começa nada do final e o que vemos atualemtne é isso, muita gente achando que o glamour é o começo do jornalismo!! Ledo engano!! Fosse Max Lopes conhecido, jamais o Complexo do Alemão teria sido tão bem mapeado!!
Parabéns ao Jornalista de fato!!
"Todos estão olhando para uma tela de alguns centímetros. Pensam que são jornalistas, mas estão ali sentados, e não na rua. O mundo deles está dentro de uma sala. Quando querem saber algo, perguntam ao Google. Estão comprometidos apenas com as perguntas que fazem. Às vezes, em nossa profissão, você não precisa fazer perguntas. Basta ir às ruas e olhar as pessoas. É aí que você descobre a vida como ela realmente é vivida." (Gay Talese)