Os solidários de boutique


A repórter entrou ao vivo na programação, direto de um dos galpões onde são recolhidos mantimentos para as vítimas da região serrana do Rio de Janeiro. As informações deveriam seguir o caminho da orientação aos telespectadores. Mas a repórter usava um tom irritadiço:
Os voluntários pedem às pessoas que, quando decidirem doar roupas íntimas, enviem – por favor – as peças limpas!
Como alguém, com o mínimo de decência, é capaz de mandar cuecas e calcinhas usadas? E pior: sujas e rasgadas?
Uma história como as mortes na região serrana do Rio de Janeiro sempre ganha contornos de dramaturgia. De todos os lados, as pessoas se organizam para juntar doações, para exercitar a solidariedade. Muitas vezes, inflamadas via mídia. É uma postura saudável, óbvio, e civilizada para uma espécie que tem o gosto histórico da selvageria nos lábios.
Pensar e agir em prol do outro é apenas um dos comportamentos possíveis. Os sentimentos ao ver o horror se misturam, o que multiplica e diversifica as reações diante das vítimas, dos sobreviventes e das autoridades, estas treinadas para a prática da comoção circunstancial.
Por que nos envolvemos em situações tão distantes? Por que somos capazes de nos mobilizarmos por pessoas desconhecidas, a centenas de quilômetros, e viramos as costas para quem nos pede ajuda na esquina de casa? A vítima sem rosto facilita a ação solidária? Desumanizá-la desgasta a culpa pela omissão coletiva e rotineira?
Ajudar ao sujeito desconhecido pode eximir o doador de responsabilidade, enquanto assassina o remorso. Existe um tipo de doador que, na verdade, enxerga ali a oportunidade de se libertar de tralhas e outras tranqueiras que entopem armários e gavetas.
Repassar objetos que um ser humano não aceitaria a um sujeito incógnito resolve dois problemas: esvazia a casa e muda a vida de alguém. Até porque diante de uma montanha de mantimentos e roupas, quem vai reclamar de uns trapinhos remetidos de má fé?
Uma assistente social da Prefeitura de Santos me explicou que, há alguns anos, metade das doações para a Campanha do Agasalho chegava inutilizada aos postos de entrega. São roupas sem condições de uso, velhas e sujas. Servem para qualquer coisa, menos proteger alguém do frio.
Muitos doadores adoram bater no peito e praguejar que fizeram a ação do dia, que são socialmente responsáveis. Espalham para os vizinhos, postam nas redes sociais, comentam com os familiares e amigos. O ego se sente no mais confortável dos spas para a consciência.
Olhar pelo próximo, para essa gente do bem, dá status ou perpetua a manutenção dele em certos círculos sociais. Doar está no mesmo patamar da preocupação com o aquecimento global, a fome no Sudão ou a seca do Nordeste. Nada que altere o expediente no sofá da sala ou em frente ao computador.   
Doar também pode ser um ato de exibicionismo. Câmeras de TV e holofotes legitimam os bons samaritanos, muitos deles celebridades (ou aspirantes à fama) que necessitam de uma reversão ou reconstrução de imagem. Lembro-me do caso de um ator que, preso com drogas, visitou uma entidade que cuidava de viciados na semana seguinte.
Os doadores que pregam seus atos em praça pública são os primeiros a sofrer de esquecimento quando a tragédia em questão desaparece das manchetes. Talvez enxerguem, de fato, a coisa com a crueza habitual: um episódio sem relação com quem o observa. Mais uma trama triste na TV.  
A solidariedade, para eles, permanece como a roupa dos egoístas, que curam a própria culpa assim que se livram das velhas peças de roupa. Em outros momentos, associam a serenidade do solidário com o entendimento de que quem recebe deve aceitar os restos, sem duvidar, sem se queixar, sem desconfiar.
São famosos os exemplos de senhorinhas voluntárias – meigas de primeira impressão – que embalam e guardam para si e seus familiares roupas e alimentos que teriam um destino mais nobre. E, com a desfaçatez mascarada pelo ar de indignação, perguntam:
— O que eles fariam com um casaco tão bom como este aqui?
Não tenho o direito de condenar a honestidade dos que desconfiam e se negam a doar. Acredito naqueles que doam em silêncio, com a discrição dos humildes. Acima de tudo, prefiro os silenciosos anônimos, que compõem a maioria dos que prezam pela premissa de que o outro representa um espelho. E compreendem a recíproca como um desfecho inevitável.

Comentários

Beth Soares disse…
Concordo com suas observações. O silêncio após um ato generoso é uma prova forte de que a doação (material ou não) não serviu apenas para livrar a culpa ou satisfazer a própria vaidade. Infelizmente, este tipo de generosidade, sem interesses secundários, é extremamente raro.
Parabéns por mais um excelente texto. E obrigada pela contribuição com os profissionais do serviço social! Se a maioria das pessoas visse no outro um espelho, certamente meu trabalho seria menos penoso, em diversos níveis e aspectos.

Beijos!
Anônimo disse…
Concordo com esse olhar e tb na incansável luta do Serviço Social, que não apenas precisa ajudar, mas inserir aquela pessoa dentro da sociedade!! Muitos são os casos de gente que não sabe de onde veio e nem seu nome!! São os rostos das esquinas, sem nomes, familias e auxilio!! Benemerência é doação!! É particular!! É entre vc e o outro apenas!! É assim que devem ser as atitudes, simples e singelas!!!

Beijo da Cris