O expresso do Oriente

O São Paulo Futebol Clube adotou um comportamento estranho, incomum para os padrões de propaganda que vem dos lados do Morumbi. Refiro-me à instituição, e não ao time, contaminado de forma indireta.
O São Paulo resolveu, do ano passado para cá, alimentar-se de desespero, digerir ilusões e expelir erros. Como sobremesa, esbarrar e balançar em dilemas éticos.
O desespero do tricolor decorre de uma doença que castiga quase todos os clubes brasileiros. O mal se chama abstinência de camisa 10. A ausência de um meia, clássico ou moderno, que seja capaz de conectar todos os setores da equipe é dificuldade cotidiana no Brasil. A espécie se encontra em extinção, tanto que importamos meias estrangeiros, de qualidade variada, como ficou cristalino no último Campeonato Brasileiro.
O São Paulo passou a ter tremedeiras constantes e apagões em campo, causados pela abstinência. Tentou vários remédios, novos ou com anos de mercado, todos placebos. Apelou agora para um medicamento, com prazo de validade em vias de vencimento.

A contratação de Rivaldo, de todos os repatriados em final de feira, é o principal sintoma de que misturar passado e presente embaralham o futuro. O São Paulo comprou o Rivaldo semi-aposentado e dirigente-bebê, mas vendeu aos torcedores e à imprensa um produto que não existe mais.
Ninguém sabe como Rivaldo vai se comportar. Qualquer prognóstico é chute. Quem acompanhou o desempenho dele nos últimos cinco anos? Mesmo que o olhássemos de perto, o campeonato do Usbequistão pode ser comparado com qual torneio? Como estabelecer parâmetros de análise?           
Neste ponto, o desespero é mal digerido e se transforma em ilusão. Rivaldo, se a aventura final der errado, será a ovelha no sacrifício. E mais ninguém! O São Paulo repetiu o deslize de outros clubes brasileiros que apostaram em marcas desgastadas na Europa.            
Rivaldo sofrerá – infelizmente - as comparações com outro Rivaldo, que só pode ser visto pelo espelho retrovisor. Muitos torcedores, omissos ou ingênuos, pretendem ver o meia-atacante do final do século passado (a expressão é proposital, para reforçar a distância) ou o sujeito que arrebentou na Copa do Mundo, há quase nove anos.             
O paralelo, acima de tudo, se mostra injusto com o próprio jogador. Rivaldo poderá arrebentar somente em lances esporádicos. Jamais ser o centro das atenções ou carregar o time nas costas. Os cavalos paraguaios do Campeonato Paulista podem reforçar a ilusão e explicitar o erro. Jogar bem contra Linense, São Bernardo e outros enganam os mais apressados.
Do ponto de vista financeiro, vale o custo-benefício? Rivaldo, um atleta discreto, de poucas palavras e inversamente habilidoso com o marketing, poderá atrair dividendos para o clube? E os gastos salariais, dinheiro que poderia ser utilizado em jogadores mais rentáveis e com capacidade de suportar vários jogos em sequência?           
É evidente que a escassez de mão-de-obra qualificada garante a ressurreição de atletas em final de trajetória. Rivaldo nada nesta corrente, inclusive surpreso pelo interesse de um clube de ponta. Preparava a própria despedida. A vida como dirigente é a maior evidência da transição em curso.
É neste ponto que entra o dilema ético, ainda que secundário diante do alarde da contratação. Rivaldo, por cláusula contratual, não pode enfrentar o Mogi Mirim enquanto jogar pelo São Paulo. E se as duas equipes se enfrentarem no mata-mata? O presidente-jogador vai torcer para quem? Como vai definir a gratificação de seus empregados? No mínimo, um conflito de interesses estará caracterizado. Ainda surpreso com a nova condição, Rivaldo disse que pensará sobre o assunto.


Se este texto apresenta mais perguntas do que respostas, é apenas coerente com a chegada do próprio atleta, de 38 anos, ao Morumbi. Rivaldo será mais um bonde a sugar dinheiro de time grande? Ou vai atropelar a todos como um trem expresso, como o que leva a Sibéria, tão longe quanto o exílio que nos leva a tantas dúvidas sobre o jogador? 
Rivaldo soa como incógnita, o que não deveria surpreender o próprio jogador, que vive nesta condição há anos, desde que se exilou no Oriente.

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