10 pílulas de normalidade

É difícil manter o ritmo adequado de respiração quando se está diante do noticiário. Descontando a carga emocional inerente à TV, ainda assim prevalece um rosário de episódios que talvez deixasse corado de vergonha um homem de outra época.

Claro que ele teria gavetas semelhantes para guardar seus próprios fracassos, crueldades e comportamentos doentios, mas fico em dúvida se todos os esqueletos apareceriam para ele ao mesmo tempo como hoje. Uma sucessão de momentos de cinismo, promessas com desfaçatez e ares de indignação de quem senta sobre a própria consciência.

A partir deste olhar inicial, proponho a você, leitor, dez questões que adoraria que sacudissem a passividade coletiva na poltrona da sala de estar.

1)Até quando vamos considerar normal políticos distribuírem passaportes diplomáticos e outros presentinhos para que parentes e amigos possam viajar, com dinheiro alheio, fingindo que estão a trabalho?

2)Até quando vamos achar normal que, a cada quatro anos, ressuscitem uma espécie chamada “deputado de verão”, que custará R$ 107 mil por mês, sem sair da cadeirinha de praia?

3)Até quando vamos entender como normal políticos eleitos abandonarem seus cargos no meio do mandato, para concorrer a outros postos, ou para assumir outras funções, que atendem a fome de poder?

4)Até quando vamos olhar repetidamente para os sobreviventes de deslizamentos de terra, provocados pela chuva, deixar de lado a pilha de corpos e culpar a ira divina?

5)Até quando vamos nos sensibilizar com os mesmos rostos tristonhos dos engravatados que visitam as áreas devastadas pelas chuvas, como se não tivessem responsabilidade alguma com a falta de planejamento urbano e a ocupação desordenada?

6)Até quando será normal conversar horas – e gastar quilos de papel – para debater a vida sexual e matrimonial do vice-presidente da República, em detrimento de seu histórico sombrio na política?

7)Até quando será corriqueiro aceitar que Lula transforme dois ex-presidentes em melhores amiguinhos da escola, o alagoano expulso de Brasília uma vez e o coronel maranhense, tratado como pessoa especial?

8)Até quando vamos engolir como rotineiros os alagamentos diários – e bairros inteiros com água a um metro de altura depois de dias sem chuva - e ouvir que projetos existem e que respostas virão, sem data e compromisso expressos?

9)Até quando vamos suportar horas na fila no posto de saúde, e centenas de casos de diarréia e vômito, enquanto os fornecedores juram de pés juntos que a água da região equivale às marcas sofisticadas francesas?

10) Até quando debateremos aos berros, somente no boteco, salários de R$ 1 milhão, R$ 1,5 milhão para jogadores descompromissados de futebol, enquanto fazemos silêncio para o aumento indecente de R$ 20 no salário mínimo?

Sempre desconfiei de tantas normalidades. É a dose de entorpecente que perpetua a vida passiva. Temo os que se julgam normais, sempre dispostos a enterrar indignações para salvar a si mesmos. Os normais diferem dos comuns, talvez vivos e conscientes no próprio anonimato, talvez capazes de levantar da poltrona e gritar pelo novo.

Sempre desconfiei que, da normalidade, nascem os sintomas da esquizofrenia social.

Comentários

Unknown disse…
Não vamos nos convencer nunca!! Porém não podemos tb esmorecer!!
Há que se resgatar um pouco de brios e fazer valer a posição cidadã de cada um!! Se cada qual no seu quadrado não for permissivo, acredito que ainda possamos resgatar algo maior, que é a possibilidade de uma cidadania forte e respeitada!!
Bela tinta Marcão, bjo.