A turma do bem

Não faço parte de grupos que se intitulam a “turma do bem”. Tenho medo deles! Evito abraçar suas causas e compartilhar de seus palavrórios. Da campanha eleitoral ao ambientalismo de shopping center.

Da indignação inerte com a violência urbana em lugares distantes ao abraço por causas sociais da moda. Do discurso da qualidade de vida (ainda que se trabalhe 12, 14 horas por dia) à obsessão pelo corpo perfeito (ainda que travestido de saúde). Do espiritualismo que se curva aos badulaques (e suas etiquetas) empilhados na sala de estar ao uso de Deus como justificativa pelo desprezo contra quem não é reflexo no espelho.

A turma do bem seduz pela falsa ingenuidade e comove pelo texto decorado que se encaixa nas necessidades do instante exibido na TV. O sonho é o padrão. A neurose é a uniformidade. Todos iguais, pensamento único. Neste universo, a turma se encarregaria das batutas da orquestra, de olho em cada acorde, punitiva em cada nota desafinada.

A turma do bem é o politicamente correto com novas roupas. Enxerga o mundo em preto e branco, despreza as nuances e as contradições, ignora a diferente perspectiva. Sob a máscara da generosidade e da solidariedade para as câmeras de TV, os filiados ao politicamente correto desejam o controle, protegem seus privilégios, minimizam as próprias responsabilidades.

O caminho natural do controle é a patrulha. Definir como todos devem se sentir, quais são as causas “eleitas”, enquadrar os discordantes e estabelecer os adversários (talvez inimigos) como a turma do mal. Claro, sem dar este nome, que infantilizaria a própria nomenclatura dos bondosos.

A turma do bem esconde o autoritarismo pelo sorriso e pela voz de locutor da madrugada. Camufla a intolerância pelas palavras pseudo-poéticas que piscam – por exemplo - em slides de natureza. A energia positiva dos almanaques de auto-ajuda sobrevive de sensações, ao mesmo tempo em que mata a reflexão e contexto que nos levam às inquietações mais profundas.

A turma do bem se expõe quando ouve o não. Ser contrariada resulta na explosão de preconceitos, traduzidos em ofensas e leviandades imediatas por todos os canais de comunicação possíveis. A voz macia arrebenta os decibéis aceitáveis, enquanto o sorriso é esmagado pelo ranger de dentes.

A indignação também se manifesta, com maior freqüência, quando as determinações sobre as normas de conduta não são cumpridas. A virulência é o sintoma de quem adora decidir o que devemos dizer, comer, vestir e, principalmente, pensar.

Mesmo nu, o politicamente correto não se assume no conflito. Apenas descobrimos quem são os sócios do clube. A hora da crise desvela a cor original. Mas os ataques são negados ou, no máximo, minimizados. Os atos ganham nomes – claro – politicamente corretos.

A turma do bem é composta sempre por vítimas, as verdadeiras e as de ocasião. As primeiras viram escravas. As de ocasião ganham as páginas das revistas de fofocas e os holofotes dos programas da tarde. Como vítimas, podem transferir a culpa, sentar-se no sofá do conforto e torcer para que a piedade as embale.

Os ataques – a turma do bem manda falar em reações, comentários e afins, desculpe! – sempre trazem o tom de limpeza. Não significa empurrar causas, grupos ou pessoas para debaixo do tapete ou exercitar a indiferença e o desprezo por eles. Significa eliminar quem pode atrapalhar o ideal de pensamento único, quem pode balançar os instrumentos que perpetuam o status diante do que deve ser dito e pensado.

A turma do bem se sente ofendida quando questionada. Não há contraponto. Existe alvo, com marca vermelha no meio da testa. A turma reage de forma truculenta, mas se faz de desentendida – às vezes, injustiçada – diante do que considera publicamente como agressões sem fundamento. A cara de espanto e o “OH!” de surpresa completam a atuação dos mocinhos.

A nova forma de politicamente correto se fortalece com aqueles que realmente se importam com as causas “eleitas”. Alimenta-se deles como sanguessugas para depois abandoná-los quando os ventos ganham outra direção, quando a moda traça novos desenhos por meio dos problemas sociais tratados como inéditos da semana no noticiário.

A patrulha da limpeza está em todos os setores da sociedade contemporânea. As celebridades legitimam as ações. Parte da mídia serve como caixa de ressonância. Os fatos se repetem no noticiário diante da indignação fugaz, do falatório de frases feitas, da monotonia do próximo pedaço de pizza a ser fatiado. Repete-se o enredo, o cardápio e a sobremesa.

Para a turma do bem, a vida deveria repetir o roteiro de um comercial de margarina, um encarte de empreendimento imobiliário ou um panfleto de agência de viagens. E com o direito de exorcizar os mauzinhos, os feios e os que não se encaixam, como uma história barata de programa infantil.

Comentários

Ebrael disse…
Texto magnífico o seu, e bem coordenado, mas...

...mas sabemos que os grupos sociais, quais sejam eles, são apenas manifestações coletivas do pensamento da maioria dos indivíduos.

As neuroses e hipocrisias individuais é que alimentam a mentira e ilusão coletivas, a ponto de "elegerem" representantes de suas próprias "Bestas 666" pessoais.

Não sou partidário dessa ideia de que o mais esperto e forte guia as multidões. São as multidões que elevam os que lhes são os seus mais fortes, apenas ícones decorativos do delírio da sociedade inteira.

As contradições e as diversidades existem? Devemos considerá-las a sério? Sim, claro! Por isso, penso que também há diversidade de delírios. Inclusive a convicção de estar imune a esses delírios! A sua crença de não pertencer a essa "turma do bem" pode gerar uma dissidência que se tornará outra "turma do bem", particularmente "melhorada".

Grande reflexão!

Abçs!
Ebrael, obrigado pela leitura e pelo comentário. Penso que você tem razão. A dissidência PODE parir uma nova "turma do bem". Muitas autocracias nasceram desta concepção. Mas penso que se transformaria em algo vivo a partir do momento que este novo grupo deseje ser o regulador das normas de conduta. Ou até desenhar um projeto de poder. Antes, porém, precisa se entender como grupo. Prefiro evitar ambas as turminhas. Se não for possível, ao menos exercitar a autocrítica ou faz piada de mim mesmo. (risos) Grande abraço!!!
Não sou de sentimento acanhado
Seifem-me a vida,
más enquanto não
vivo-a aos bocados
beboa-a em goles largos

Definitivamente deio os felizes
e pelos tristes
não nutro simpatia
Gosto sim é dos que vivem
amor e ódio intensos
todo o sentimento
em cada passo a cada dia
Anônimo disse…
Parabéns, professor.

O texto ficou magnífico.

Eu também tenho medo da turma do bem!

A turma do bem tomou conta dos movimentos sociais, dos partidos políticos, das entidades, dos grupos ambientais e, até mesmo, da imprensa.

A turma do bem seduz com o discurso emotivo.

A turma do bem se renova com as transformações da sociedade.

A turma do bem ganha destaque nas manchetes dos grandes jornais.

Mas a turma do bem representa o sofismo do século XXI, que busca estabelecer "verdades inquestionáveis" na sociedade.

Afinal, a turma do bem é nefasta, repugnante,medíocre.

A turma do bem consegue esconder as suas mentiras debaixo do falso puritanismo.

A turma do bem é arrogante e despreza o pensamento alheio.

A turma do bem fecha os olhos para o massacre na Vila Cruzeiro.

A turma do bem calou-se diante dos escandalos de corrupção que dominaram o cenário político nos últimos tempos.

A turma do bem favorece à cultura do fisiologismo nas nomeações de cargos públicos

Aliás, a turma do bem se satisfaz com o cálice da corrupção.

enfim, a turma do bem representa o pensamento arcaico que domina a sociedade brasileira.

Valeu, professor.

Grande abraço, do Pupo