Quando se entra na rodovia BR-116, após sair da Estrada da Banana, no litoral sul de SP, é quase obrigatória a parada em um posto de gasolina. É, na verdade, um daqueles postos que se transformaram em mini-shoppings e vendem desde telefones antigos recauchutados a espetinhos de frango, de lingeries a CDs de vários gêneros musicais. Gasolina, álcool e óleo diesel são detalhes para fechar o pacote.
Nesta parada, comecei a conversar com um sujeito que vendia brincos, colares e pulseiras ao lado da entrada principal. Para ser honesto, ele puxou conversa. Desejava uma carona até Iguape. Pretendia chegar à Ilha Comprida, para alcançar os turistas no feriado prolongado.
— Se aqui eu faturo R$ 10, lá eu faturo R$ 50.
Eu já estava de carona. Não poderia terceirizá-la, ainda mais em um carro lotado, de gente e de bagagens, inclusive bolo de aniversário.
Engatamos um papo de quase meia hora. Família, movimento na beira da estrada, opções de vida até que chegamos no trabalho.
Emerson, que é descrição fiel de Bob Marley, com pequenas adaptações, como um brinco de pena na orelha esquerda, perguntou minha profissão. Emerson é o nome de nascimento, agora em segundo plano. Ele se identifica com um nome rastafári, que me soou mais coerente com o amor demonstrado pelo estilo de vida.
Quando disse que era jornalista, ele me perguntou:
— O ENEM foi cancelado?
Apenas relatei a indecisão do Ministério da Educação e os problemas provocados pelas falhas de organização da prova. Não entrei em detalhes por sentir que ali deveria prevalecer o tom pessoal, ainda que nos conhecêssemos há 15 minutos e sequer tivéssemos nos apresentado formalmente. Não era um noticiário em andamento, e sim uma conversa de beira de estrada, com nascimento e morte marcadas. Bastava que um dos dois seguisse seu caminho. E os destinos não batiam.
Mas o ENEM se transformou no centro do diálogo. Ele me disse:
— Eu fiz a prova para acompanhar meu filho de 17 anos. Não vou à escola há 11 anos, mas sempre li muito. Li mais de 600 livros neste período.
Exagerando ou não no número, a estatística é irrelevante. O mérito está no fato de que ele incorpora mais uma testemunha de como a leitura prescinde dos grilhões e do autoritarismo da escola. A leitura só reforçou suas convicções, que dispensam a arrogância de vomitar saber de almanaque e ignoram a aparência para definir se o outro é digno de algumas palavras.
Não daria carona a ele e não compraria miçanga alguma. Pensei em comprar para a mulher por quem sou apaixonado, mas tive medo de errar na escolha. Era apenas uma conversa para matar o tempo e – quem sabe? – conhecer outra pessoa interessante, sem interesses aparentes. Somente por curiosidade sobre outra história de vida, com intersecções ou linhas paralelas em relação à minha história.
A preocupação do companheiro de conversa era a redação. Temia que fosse desclassificado. Orgulhava-se de ter utilizado Maquiavel e outros autores para sustentar seus argumentos, mas acreditava que – no último parágrafo – cometera o erro fatal. Emerson se posicionou em primeira pessoa, um crime – segundo ele – para um texto dissertativo.
— Será que vão me desclassificar? Acho que o texto estava ótimo.
Eu disse a ele que escrever em primeira pessoa, naquele caso, caracterizava um erro. Diante de olhos arregalados, expliquei melhor: o examinador provavelmente tiraria algum ponto do texto dele, mas jamais o eliminaria por aquele deslize. Deslize para as regras engessadas e para os escravos da forma, pois creio – quase cegamente – que é possível dividir textos em dois: os bons e os ruins. O resto é recurso de linguagem, instrumento para se contar uma história.
Mais aliviado, ele começou a me contar como enxergava o tema da redação do ENEM: O trabalho dignifica o homem. Para alguém que havia optado por um estilo – visto por muitos – transgressor de vida, seria natural que se posicionasse contra a premissa da prova. (Voltarei ao assunto em outro texto)
Encontrei ali um interlocutor e um carrasco de minhas fraquezas. Encontrei ali alguém que havia posto em prática minhas teorias e que representava a concretização da minha falta de coragem – e minha prisão de conforto – transformada em inércia.
Emerson entendia, à maneira dele, que o trabalho amordaçava o homem comum, o mantinha em repouso, o mantinha insatisfeito com promessas de conquistas futuras que, se alcançadas, dariam lugar a outras promessas. Um circuito fechado de submissão. Emerson era capaz de comprovar, ao modo tranqüilo de dizer, como o trabalho foi reduzido a valor moral e alvo da faceta perversa dele, o moralismo.
O diálogo filosófico sobre o trabalho (e o ENEM) serviu como cortina de fumaça para esconder seu papel secundário. A prova me dava a impressão de significar, para meu colega de rodovia, somente mais um caminho para se aproximar do filho de 17 anos, acompanhá-lo em seus sonhos e representar, de um jeito talvez singular, seu papel de pai.
Nós nos despedimos depois de meia hora. Fizemos as apresentações formais e eu segui. Ele esperaria por uma carona para Ilha Comprida e me pediu que fosse em paz.
Como único cliente (fracassado) naquele período, saí com a sensação renovada de que, por vezes, as melhores aulas acontecem fora da sala, nos encontros em que professor e aluno trocam e retrocam seus papéis, numa conversa horizontal, com construção conjunta de experiências e, acima de tudo, sem a pretensão de fazê-la. Aula é aula quando não recebe este nome, pelo menos enquanto acontece.
Nesta parada, comecei a conversar com um sujeito que vendia brincos, colares e pulseiras ao lado da entrada principal. Para ser honesto, ele puxou conversa. Desejava uma carona até Iguape. Pretendia chegar à Ilha Comprida, para alcançar os turistas no feriado prolongado.
— Se aqui eu faturo R$ 10, lá eu faturo R$ 50.
Eu já estava de carona. Não poderia terceirizá-la, ainda mais em um carro lotado, de gente e de bagagens, inclusive bolo de aniversário.
Engatamos um papo de quase meia hora. Família, movimento na beira da estrada, opções de vida até que chegamos no trabalho.
Emerson, que é descrição fiel de Bob Marley, com pequenas adaptações, como um brinco de pena na orelha esquerda, perguntou minha profissão. Emerson é o nome de nascimento, agora em segundo plano. Ele se identifica com um nome rastafári, que me soou mais coerente com o amor demonstrado pelo estilo de vida.
Quando disse que era jornalista, ele me perguntou:
— O ENEM foi cancelado?
Apenas relatei a indecisão do Ministério da Educação e os problemas provocados pelas falhas de organização da prova. Não entrei em detalhes por sentir que ali deveria prevalecer o tom pessoal, ainda que nos conhecêssemos há 15 minutos e sequer tivéssemos nos apresentado formalmente. Não era um noticiário em andamento, e sim uma conversa de beira de estrada, com nascimento e morte marcadas. Bastava que um dos dois seguisse seu caminho. E os destinos não batiam.
Mas o ENEM se transformou no centro do diálogo. Ele me disse:
— Eu fiz a prova para acompanhar meu filho de 17 anos. Não vou à escola há 11 anos, mas sempre li muito. Li mais de 600 livros neste período.
Exagerando ou não no número, a estatística é irrelevante. O mérito está no fato de que ele incorpora mais uma testemunha de como a leitura prescinde dos grilhões e do autoritarismo da escola. A leitura só reforçou suas convicções, que dispensam a arrogância de vomitar saber de almanaque e ignoram a aparência para definir se o outro é digno de algumas palavras.
Não daria carona a ele e não compraria miçanga alguma. Pensei em comprar para a mulher por quem sou apaixonado, mas tive medo de errar na escolha. Era apenas uma conversa para matar o tempo e – quem sabe? – conhecer outra pessoa interessante, sem interesses aparentes. Somente por curiosidade sobre outra história de vida, com intersecções ou linhas paralelas em relação à minha história.
A preocupação do companheiro de conversa era a redação. Temia que fosse desclassificado. Orgulhava-se de ter utilizado Maquiavel e outros autores para sustentar seus argumentos, mas acreditava que – no último parágrafo – cometera o erro fatal. Emerson se posicionou em primeira pessoa, um crime – segundo ele – para um texto dissertativo.
— Será que vão me desclassificar? Acho que o texto estava ótimo.
Eu disse a ele que escrever em primeira pessoa, naquele caso, caracterizava um erro. Diante de olhos arregalados, expliquei melhor: o examinador provavelmente tiraria algum ponto do texto dele, mas jamais o eliminaria por aquele deslize. Deslize para as regras engessadas e para os escravos da forma, pois creio – quase cegamente – que é possível dividir textos em dois: os bons e os ruins. O resto é recurso de linguagem, instrumento para se contar uma história.
Mais aliviado, ele começou a me contar como enxergava o tema da redação do ENEM: O trabalho dignifica o homem. Para alguém que havia optado por um estilo – visto por muitos – transgressor de vida, seria natural que se posicionasse contra a premissa da prova. (Voltarei ao assunto em outro texto)
Encontrei ali um interlocutor e um carrasco de minhas fraquezas. Encontrei ali alguém que havia posto em prática minhas teorias e que representava a concretização da minha falta de coragem – e minha prisão de conforto – transformada em inércia.
Emerson entendia, à maneira dele, que o trabalho amordaçava o homem comum, o mantinha em repouso, o mantinha insatisfeito com promessas de conquistas futuras que, se alcançadas, dariam lugar a outras promessas. Um circuito fechado de submissão. Emerson era capaz de comprovar, ao modo tranqüilo de dizer, como o trabalho foi reduzido a valor moral e alvo da faceta perversa dele, o moralismo.
O diálogo filosófico sobre o trabalho (e o ENEM) serviu como cortina de fumaça para esconder seu papel secundário. A prova me dava a impressão de significar, para meu colega de rodovia, somente mais um caminho para se aproximar do filho de 17 anos, acompanhá-lo em seus sonhos e representar, de um jeito talvez singular, seu papel de pai.
Nós nos despedimos depois de meia hora. Fizemos as apresentações formais e eu segui. Ele esperaria por uma carona para Ilha Comprida e me pediu que fosse em paz.
Como único cliente (fracassado) naquele período, saí com a sensação renovada de que, por vezes, as melhores aulas acontecem fora da sala, nos encontros em que professor e aluno trocam e retrocam seus papéis, numa conversa horizontal, com construção conjunta de experiências e, acima de tudo, sem a pretensão de fazê-la. Aula é aula quando não recebe este nome, pelo menos enquanto acontece.
Comentários
O texto diz muito sobre você. Diz muito sobre a sua paixão pelas pessoas e por suas histórias, tão comuns e tão belas, mas que quase ninguém se interessa. É um texto engraçado, envolvente, sensível e profundo. É você, impresso em cada palavra. Li, e te senti próximo. E me identifiquei com sua maneira de enxergar a cena.
Parabéns, de novo. Acertou em cheio minha alma e meu coração.
E, tenho certeza, se tivesse comprado as miçangas, teria acertado também.
Um beijo!
Encontros na beira da estrada sempre é coberto de mistério, e nunca fica claro é a verdadeira claridade, por isso, grandioso.
Parabéns. Seu texto, é mais uma vez, material pra gente pensar. Uma mensagem tão simples e tão interessante, para reflexão.
Perceber o que a sombra esconde, interpretar.
Um beijo grande.
Zuleica.
Forte abraço!!!