Que horas são? São cinco e 60!

O Papai Papudo morreu! Quem tem mais de 35 anos talvez se lembre de um dos principais personagens das manhãs na TV. Aquele velhinho, com um relógio enorme, que – junto com a Vovó Mafalda -, dava suporte ao Bozo, pela antiga TVS.

Papai Papudo era de um tempo que parte da programação de TV, com exceção das loiras de roupas um número menor, ainda se preocupava com brincadeiras infantis, sem que marcas e produtos fossem despejados nos rostos das crianças. A ingenuidade dos bordões repetidos retardava e remediava a metamorfose da molecada em consumidores.

Papai Papudo era de um período em que as crianças ainda eram tratadas como tal. Mas, assim como seus dois amigos palhaços, foi assassinado pelo retorno ao mundo dos adultos pequenos. Misturamos as faixas etárias, queimamos etapas, pulamos degraus que entortam as regras da biologia. Viramos um paradoxo. Quando crianças, aceitamos ser adultos. Quando adultos, rezamos pela vitalidade da infância.



As brincadeiras do programa do Bozo eram tradicionais, simples e repetitivas, que mantinham as crianças seguras em seu próprio universo, entretendo-as sem empurrá-las para responsabilidades e valores ainda desnecessários. As brincadeiras eram profundas por serem rudimentares, tanto que criaram raízes na memória de quem adora o exercício das sessões de nostalgia e saudade dos anos 80.

Os telefonemas ao vivo, por exemplo, que ilustravam a batalha naval. O barulho da água e as palavras do Bozo:

- Ai, que peninha!

A corrida de cavalos, com os improváveis competidores de cores amarela, verde e vermelha, fazia com que a adivinhação da vitória fosse somente uma poesia doce, sem aspirações a grandes prêmios ou recompensas. O enredo absurdo que impulsiona a fantasia, que acaricia a imaginação de quem depende dela para ser criança.

E o goleiro do Bozo, que caia para os lados, desafiando as leis da física e os limites da anatomia. Era o apelido de quem tentava jogar no gol, depois de falhar na linha. O goleiro gigante, que reproduzia o cenário mágico de um tabuleiro de futebol de botão.

Confesso que havia enterrado Papai Papudo no cemitério de lembranças. Quando nos tornamos adultos, poucas vezes notamos o quanto os personagens infantis compõem o que fomos e o que ainda somos. Colocamos a culpa na rotina, nos compromissos, no script que decidimos seguir. Autores que renegam a história em construção, envergonhados demais para assumir os papéis escolhidos sem pudor.

Transferimos os erros e, por vezes, encaramos o passado como arquivo morto, incapazes de observar o processo que nos transforma, que nos endurece ou flexibiliza. A origem dele está lá no início, quando não nos damos conta de nada além de nós. Muitos permanecem assim.

A ingenuidade de Papai Papudo nos indicava o caminho da serenidade, da paciência, da tolerância, sem levantar estes valores como bandeiras estampadas por lições de moral, tão nocivas quanto rasteiras para o mundo das crianças.

Papai Papudo falava a minha língua naquela primeira metade dos anos 80. Para ser entendido, não me tratava como idiota, respeitava a fase de uma criança – em transição contínua -, e não exigia que eu me comportasse conforme os modismos dos badulaques que a TV passara a oferecer.



Papai Papudo era como seus dois principais companheiros: palhaços na essência do nariz vermelho. Jamais poderíamos perceber que o homem por trás do personagem sofria, sentia dores, odiava ou invejava. O palhaço verdadeiro era imune à desgraça e à mesquinharia. Era sempre precedido pelo sorriso. Se possível, transformado em gargalhadas ainda que a brincadeira não chegasse a tanto. Ainda que a brincadeira fosse a mesma de todos os dias.

Papai Papudo foi tão profundo na sua vida de palhaço que jamais ouvi falar do homem que se escondia atrás da barba, dos óculos, do chapéu e da maquiagem. Soube quem era apenas quando li sobre a morte dele. Uma criança não precisava destas informações. Um adulto que luta para recuperar a infantilidade, sem ser infantilóide, também.

Papai Papudo – ou melhor – Gilberto Fernandes, o Gibe, morreu no último dia 16 de julho, de problemas cardíacos. Ele tinha 75 anos e não resistiu a uma cirurgia. Era fã de Oscarito e se criou no circo, o que explica – em parte - a ternura e da espontaneidade com que repetia suas explicações todas as manhãs, na TVS.
Gilberto – ou melhor – Papai Papudo trabalhava como redator no Programa do Didi (Rede Globo). Gilberto Fernandes foi enterrado no dia 17, em Registro, no Vale do Ribeira.

Papai Papudo permanece vivo como um dos ícones do momento em que crianças eram vistas somente como crianças. Personagens assim seguem congelados – distorcidos ou não – nas memórias de quem necessita olhar para trás para compreender o trecho atual do caminho. Personagens que, sem a intenção do futuro imortal, cristalizam o tempo das respostas sinceras, do olhar curioso e dos sonhos simples.

Papai Papudo paralisava a mesma hora todos os dias, pela frase sempre esperada, segura, mas nunca enjoativa:

- Que horas são? São cinco e 60!

Comentários

Unknown disse…
Como é gostosa essa nostalgia de um tempo tão seguro né? Como vc bem disse não ainda endurecidos ou flexibilizados, ainda incautos e francos, como são as crianças. Bela homenagem!!! Palhaços simples, engraçados e que mexiam com o imaginário das crianças sumiram, até mesmo os circos sumiram!! Nossa memória afetiva ainda pensa na bilheteria, na lona e não nos espetáculos tecnológicos de hoje. Merecem ser lembrados!!!Parabéns!!
Anônimo disse…
Belíssimo texto!!!
Me lembro que quando o BOZO foi ao ar era pela RECORD, e o programa, se não me engano, tinha uma duração de 1 hora começando as 17:00 e terminando assim as 18:00 e por isso quando era hora de terminar quando perguntado ao Papai Papudo que horas eram ele já tinha a resposta na ponta da língua:
São 5 e 60!
Ou seja, já eram 6 horas da tarde (18:00).
Bons tempos...