O fundo fictício

O Festival Santista de Teatro Amador é o evento mais tradicional desta arte, aqui no litoral. Existe há mais de 50 anos e, embora tenha perdido seu caráter político-ideológico, consegue ainda revelar novos atores e técnicos, além de manter vivo o prazer do exercício do palco.

Acompanhei o Festa em vários momentos, das fases mais gordas até às vacas esquálidas. Testemunhei, em ano eleitoral, um ex-prefeito de Santos garantir a distribuição de água e mantimentos à vontade, mais verbas para a organização e convidados. No ano seguinte, nem o bebedouro do Teatro Municipal funcionava.



Em 2010, o Festival corre risco de não ser realizado. O motivo é a falta de dinheiro. É claro que o evento deveria, há anos, ter se soltado das amarras do Poder Público da cidade. O Festa também sofre com as divergências da classe artística, o que contribuiu inclusive para que o festival jamais ganhasse caráter regional. Quanto mais se tornar um festival de âmbito estadual!

Os problemas financeiros do teatro, em Santos, poderiam ser resolvidos (ou amenizados) com a criação do Fundo de Cultura, administrado em conjunto por membros da Prefeitura, outros poderes e pessoas da sociedade civil.

Na semana passada, representantes de vários segmentos se reuniram para uma audiência pública. O objetivo era debater a criação do Fundo, ideia que se arrasta nos corredores da burocracia municipal há três anos. A Secretaria de Cultura não enviou representante e depois informou, via imprensa, que não tinha recebido convite para o debate.

Independente da justificativa, fica claro que a gestão atual não tem vontade política de resolver a questão. E muito menos negar interesse. O silêncio assegura a inércia política.

O fundo de cultura como peça de ficção científica reflete como o Poder Público encara o assunto. Não é um problema apenas de Santos, mas dos governantes em geral. Cultura é encarada como apêndice, como um luxo de intelectuais e de gente que não tem o que fazer.

Políticos costumam temer o que não compreendem. Assim, o tema vaga por um purgatório político, pois não é visto como necessidade social tampouco significa um assunto ligado à economia, no sentido de investimento a curto prazo (lucro).

O orçamento das secretarias de Cultura mal ultrapassa 1% ao ano. A maior parte do dinheiro geralmente está comprometida com folha de pagamento. Não há planejamento de longo prazo. Prevalece, na maioria dos casos, a ideia de que investir em cultura é construir uma agenda de eventos.

A visão dos gestores públicos ainda passa pela escravidão ao progresso. Ninguém é favor de retrocessos, mas não dá para aceitar uma mentalidade que se resume às grandes obras públicas, cuja imponência beneficia poucos grupos.

Nem o argumento de geração de empregos cola mais. A maioria dos trabalhadores vem de outras regiões a preço de banana e um dormitório com condições de salubridade discutíveis.

Historicamente, a Prefeitura de Santos perpetua a separação entre cultura erudita e cultura popular, termos – aliás – repetidos por aqueles que defendem a segregação. Neste sentido, os espaços públicos acabaram também privatizados, se não oficialmente, pela barreira financeira.

O Teatro Coliseu é um exemplo de como cultura permanece associada aos interesses de quem flerta com o poder. A obra, que se arrastou por quatro administrações, serve apenas à classe média e ao topo da pirâmide sócio-econômica. Não há eventos a ingressos populares. Não existe a preocupação com a formação de platéias. Qualquer peça ou show custa até R$ 60. Nem ir ao cinema em shopping, no sábado à noite, custa tão caro.

O Fundo Municipal de Cultura, se bem administrado, serviria para a aproximação das classes mais populares dos bens culturais. Poderia servir para formar mão-de-obra artística que, atualmente, necessita subir a serra para estudar e se profissionalizar.

As duas últimas administrações desmontaram o aparato cultural do município. A Bienal de Artes Plásticas perdeu peso no cenário nacional. O Festival de Teatro está com o pires na mão. Os shows populares na praia foram esvaziados, quase extintos, com exceção das tendas nas férias de verão. Seriam apenas para os turistas? Por que não um circuito ano todo? Plínio Marcos, em seu último texto, chegou a ser censurado por aqui.



O Fundo Municipal de Cultura deveria virar uma bandeira política da classe artística local, para sua própria sobrevivência a longo prazo. Por outro lado, artistas e produtores culturais precisam fugir da dependência governamental. A produção cultural precisa ser profissionalizada, o que é muito mais do que um emprego comissionado em secretaria, em que uma minoria – com voz retumbante – se agarra. No mínimo, vira conflito de interesses. Viver do dinheiro público é viver na posição de vítima, sempre mais cômoda e imune a conflitos.

A questão é que chegamos em um ponto que se tornou vergonhoso pedir migalhas aos políticos para a realização de um festival de teatro. É assumir-se como massa de manobra no processo político. Por que não agir como no caso do cinema, que utiliza espaços nas universidades, em entidades da sociedade civil e conta também com patrocínios privados?

O teatro santista pode reviver o velho enredo conservador da gestão cultural local. Anos atrás, o Festival de Música Nova passou a ser realizado, em parte, na cidade de São Paulo. A Prefeitura de Santos teria argumentado que música erudita falava para poucos. Um desrespeito com o maestro Gilberto Mendes e sua história. Cuidado, porque a classe artística teatral pode ouvir que não fala para ninguém.

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