O termômetro do fedor - Parte 1



Sempre desconfiei das datas comemorativas. Elas servem para que se exercite a hipocrisia da falsa preocupação com o “aniversariante”. Por outro lado, serve para lembrarmos dos erros como forma de ultrapassá-los e não repeti-los. É estranho, de certa forma, precisarmos de um dia para comemorar certas coisas que deveriam ser inerentes ao cotidiano. Talvez signifique que estejamos em falha conosco. No mínimo, com o outro.

É o caso do Dia Mundial do Meio Ambiente, celebrado em 5 de junho. Neste dia, muitos dão sorrisos amarelos e, vermelhos de vergonha, ficam temporariamente verdes. É uma forma de esconder o bege da indiferença e o amor pelo cinza do concreto e do “progresso”.

O meio ambiente paga os pecados para comer pelas beiradas da agenda pública. Os políticos fingem gostar do tema e saem pela tangente quando o assunto precisa aparecer nos programas sociais. Os políticos, neste quesito, não são diferentes da maioria esmagadora dos eleitores. Todos rezam a cartilha do ambientalismo de boutique, em que o tema é observado pela ótica do consumo, como mercadoria em negociação permanente, sem crises de consciência.



O jornal O Estado de São Paulo publicou, na última semana, uma pesquisa que – para encurtar a história – chegou à seguinte conclusão: as pessoas dizem estar mais preocupadas com o meio ambiente, mas se limitam a falar sobre o assunto. Uma minoria mudou hábitos de consumo ou de descarte de produtos. A mudança só acontece quando se mexe no bolso do sujeito (o que reforça o argumento de que pensar meio ambiente é pensar em produto). Exemplo: economizar luz elétrica.

As empresas passaram a investir pesado em programas de responsabilidade social, com o objetivo de alcançar a turma do “faça o que eu digo, não faça o que eu faço”. O foco principal é o meio ambiente. São ações dentro e fora da sede da companhia, desenvolvimento de linha de produtos e associação a personalidades com trânsito na área ambiental. E gastos maciços e contínuos em marketing. O mundo corporativo está realmente angustiado com o futuro do planeta, para usar um jargão do ambientalismo de boutique?

È evidente que as empresas se apóiam no comportamento dos consumidores, retratado na pesquisa dois parágrafos acima. O consumidor compra na prateleira do supermercado a paz de sua consciência. Mas mantém o estômago refém da industrialização da comida. E a mente, escrava de uma mentalidade de posse.

È complicado e caro ser adepto de uma alimentação saudável. Por motivos de saúde, tive que repensar minha relação com as refeições. Percebi, em termos práticos, como se tornou difícil comer de maneira correta. Os alimentos saudáveis são mais caros e não estão disponíveis em todos os lugares. É preciso temperar com paciência o relacionamento com a comida saudável. Em tempos de tempo curto, prevalece a comida artificial, ao alcance do balcão ou ao clique do aparelho de microondas.

O consumidor pratica, quando se relaciona com as empresa “selo verde”, a terceirização da moral. O indivíduo é incapaz de se comportar como cidadão, de cobrar responsabilidades de seus governantes ou até de se portar como sujeito crítico diante do que consome. Como não o faz, transfere o papel para alguém, disposto a construir uma boa imagem e ganhar dinheiro com isso. As empresas são o exercício vivo da terceirização da moral dos consumidores.



E onde fica o Estado? Quando não está ausente, atrapalha. O Estado brasileiro é adepto, via de regra, do progresso por meio de grandes obras. Voto é mais do que documento, é tamanho. O meio ambiente representa uma barreira de atraso, que atravanca o desenvolvimento econômico. Pensar assim é seguir a via mais rápida e mais eficaz do ponto de vista eleitoral.

Na última eleição, nenhum candidato à presidência, como escrevi recentemente, incluiu a questão ambiental na agenda de campanha. Este ano, o assunto aparece porque uma das candidatas, Marina Silva (PV), tem um histórico de ambientalismo, embora o discurso dela não seja unanimidade em seu próprio partido. Os demais candidatos fazem voto de silêncio. Para eles, a melhor saída é ser mudo para que se evite a saia justa das declarações politicamente incorretas.

Em Santos, cidade onde moro, a Secretaria Municipal do Meio Ambiente (os ingênuos diriam: que bom que lá tem uma) responde por apenas 1,5% do orçamento. Quase todo o dinheiro está comprometido com folha salarial. É um apêndice cuja voz não tem ressonância nas demais pastas.

A única saída é uma mudança profunda de mentalidade. Significa entendermos que certos recursos são finitos e que o consumo desenfreado nos conduzirá ao fracasso social e pessoal.

O primeiro passo seria o fortalecimento de mecanismos de cobrança junto às empresas e à classe política. Podemos nos recusar a comprar certos produtos. Podemos adotar maior criticidade em relação ao marketing verde, que constrói a imagem de ambientalismo shopping center. Podemos votar em políticos comprometidos com a causa ambiental e jogar ao ostracismo os adeptos do concreto a qualquer custo.

Podemos. Mas a realidade nos aponta que boa parte da sociedade está contente com este modelo. O modelo de consumo que nos vende as falsas ideias de felicidade e liberdade por meio das prateleiras dos supermercados, dos corredores dos shoppings.

Se as pílulas da felicidade forem verdes, a consciência fica limpa. Assim, todos batem palmas nas datas comemorativas. E continuam a acreditar que meio ambiente é composto apenas por bichinhos e plantinhas. De preferência, atrás de vidros e jaulas.

Crédito da arte: DaCosta

Comentários

Anônimo disse…
E vamos combinar que fede hein!!! Atrás de muito marketing de selo verde temos biopirataria, exploração de mão de obra indígena e uma infinidade de atitudes nada corretas, nem politicamente ou mesmo humanisticamente. Fato é que com dia disso ou daquilo, algumas consciências sentem-se tranquilas, são apaziguadas. Então tá. Façamos o jogo do contente, e o comércio que ascaba ganhando com essas datas comemorativas, simbólicas e inexpressivas. O Dia mundial de Combate a AIDS deve ser todo dia, assim como todos os outros. Mas como fazer mídia do que deveria ser o cotidiano? Afinal de contas o planeta é onde vivemos e viveremos!!! CRis
Paty disse…
Eu também penso ser muito estranho precisarmos de um dia para comemorar algo que deveria ser cotidiano. Concordo com praticamente tudo o que escreveu. Mas, vegetariana há mais de 10 anos, devo discordar da afirmação de que é "complicado e caro ser adepto de uma alimentação saudável". Não precisamos de alfaces hidropônicos diariamente, ou de apenas produtos orgânicos. O pessoal deveria, simplesmente, tentar ser MAIS saúdavel. Por exemplo, experimentando ficar sem comer carne por um mês. Troque um bife por uma beringela a parmegiana. Grandes diferenças seriam notadas. Seu bolso, sua saúde, os animais e o meio ambiente agradeceriam. Abs!