"Não está mais comigo, Dieguito"



A Copa do Mundo está chata demais. A tendência histórica é que o nível das partidas cresça, com a eliminação das seleções mais fracas e a entrada nas fases decisivas. O que torna a competição aborrecida não é exatamente a qualidade dos jogos, mas a predominância do politicamente correto.

Quase todos os times previsíveis, bem comportados, enquadrados em estratégias que abrem mão da inventividade e da fantasia. Vale a política do não perder ao invés do gol como missão. Por seguir o caminho contrário da maioria é que a Argentina e o técnico Diego Armando Maradona tem dado sabor diferente ao Mundial.

Copas do Mundo são como enredos inacabados, sem autor definido. São tramas com mais de um clímax, reviravoltas múltiplas, tragédias e falsos desfechos. Histórias que dependem de personagens fortes, cheios de conflitos, psicologicamente instáveis e dispostos a avançar por sobressaltos e diálogos cortantes.

Maradona se encaixa no perfil. Foi ao reconhecimento coletivo e desceu à execração pública em inúmeras ocasiões, tanto como jogador quanto pessoa pública. O maior jogador argentino da história não é um grande técnico. Talvez nem técnico seja, no sentido literal do termo. Mas é um líder. E pode bastar em uma competição curta, marcada por paixões e rompantes de criatividade como ponto de diferença.

Neste sentido, Maradona e Dunga são como irmãos de sangue. Parte da imprensa e dos palpiteiros de plantão (que podem ser as mesmas pessoas) aguarda o menor deslize para transformá-los em demônios dignos do exorcismo público.

Maradona não é um estrategista. Não montou uma seleção alemã, calculista e pragmática. Ele preservou o que resta de latinidade nas seleções da América do Sul. Latinidade que nós, brasileiros, talvez não consigamos ressuscitar diante da metamorfose européia de nossos principais jogadores.

Os idiotas apenas enxergam Maradona como um palhaço, que anima as partidas da Argentina à beira do campo. Divertem-se com a vibração dele, com os sentimentos incontidos a cada lance genial de Messi, a cada desarme de Verón, a cada batalha minuto a minuto de Carlitos Tevez, a cada gol de Gonzalo Higuain.

Uma pitada de números para justificar os argumentos. A Argentina venceu as últimas sete partidas, feito que não acontecia há 12 anos. Maradona dirigiu o time em 21 partidas. Ganhou 15. Não se trata de tática ou avaliação criteriosa de cada adversário. O personagem principal uniu o resto do elenco em torno do espetáculo. É o abraço que cada jogador, inclusive os reservas, deu no treinador após a vitória contra a Coréia do Sul.

A Argentina é a estrela eterna da semana. Sabemos que uma eliminação na próxima fase transformará as qualidades em símbolos da irresponsabilidade. De protagonista à verme sem escalas.

Maradona está acostumado com isso. E capitaliza em cima da própria imagem. Tira o foco do time e chama os holofotes para si, o que poupa Messi e os demais colegas de especulações e boatos. É claro que Diego ganha com a exposição, mas o que me interessa é a pimenta que muda o gosto do prato. As declarações dele são explosivas e sem a fachada hipócrita da falsa cordialidade que marca a relação das estrelas egocêntricas.

A Argentina respondeu ao jeito Maradona de ser. Embora o goleiro não seja confiável e a defesa tenha bons zagueiros com dificuldades coletivas, o time joga como se estivesse em um churrasco de final de semana. Finge estar descompromissado, mas quer vencer de qualquer jeito. Atropela a vítima na base do um dois, um dois, a velha escola portenha. Brinca de “não está mais comigo”, referência à bola, que passa por todos e deixa o adversário com cara de ninguém.

A latinidade se mantém pulsante nos portenhos, com a fantasia dos dribles, a luta traduzida em suor, lamentações e euforias, a velocidade no ataque, a imprevisibilidade que se espera do camisa 10. Ali está o que nos diferencia dos europeus e que nos garante as vitórias, a compensação pelos nossos defeitos e fragilidades fora de campo.

Não gosto das listas de favoritos. Nesta Copa, nem de bolão participo. Por isso, não aposto na Argentina como o campeão das próximas 24 horas. Até porque a história do futebol nos mostra como a soberba e a vaidade contaminaram os times argentinos ao longo dos mundiais. Ótimo para nós, que nos deliciamos com sucessivas eliminações precoces dos vizinhos. Como em 2002, quando a Argentina era favorita e caiu na primeira fase (18º lugar).

Decidi viver a Copa do Mundo de momento em momento, já que a competição é curta. Sei que a maioria dos jogos são entediantes. Suportar o marasmo do politicamente correto é a sina de quem sonha pelo instante mágico do jogo. Quem mais se aproximou da essência da arte foram os argentinos.

Comentários

Anônimo disse…
Finalmente li algo inteligente sem as típicas besteiras de rivalidades. Eu até brinco às vezes que o problema da Argentina é que ela se chama Argentina...rs Se ela se chamasse Terra de Santa blablabla, ninguém se preocuparia tanto com ela. O problema do Maradona (para os brasileiros) é que ele é argentino. Se fosse inglês seria um Lord que teve seus deslizes na vida. Obrigado pelo inteligente texto. Finalmente...Saludos!
alano_luiz disse…
AINDA BEM QUE TEMOS PESSOAS QUE OBSERVAM O FUTEBOL COM UM OLHAR MAIS AMPLO, FORA DAS DISCUSSÕES CORRIQUEIRAS DOS QUE NÃO SABEM NADA, DO MUNDO DA BOLA, PARABÉNS PELA SIMPLICIDADE NO ESCREVER SOBRE A COPA E SUAS PECULIARIDADES.
Anônimo disse…
Nõa manjo nada de futebol, mas curti bastante o texto.
Voltando ao assunto... Quem sabe não seja uma inspiração para o Brasil mandar um Pelé na próxima vez... Se o problema for um entusiasta ou alguém de grande nome para empolgar só pela presença, então estará resolvido.
Unknown disse…
Como saber fazer a magia de letras transformarem-se em belos textos é mesmo um dom!!!
E vc tem!!
Um assunto chato desses e eu li e adorei o tom, teor e mensagem!!!
Parabéns!!!
Suas sacadas são match point!!!
Gostei do texto também.

Só acho que o Maradona poderia ser ainda mais "perfeito", e ter chamado o Cambiasso e o Zanetti. Jogaram um bolão nessa temporada, e foram trocados por jogadores bem medianos (como aquele Jonas Gutierrez).

Mas ainda assim, como torcedor, espero que o tango dele termine em tragédia.

Abrazz!