Escolástica: 12 anos de cadeia

Reportagem publicada no jornal Boqueirão (Santos/SP), edição 785, 17 de abril de 2010, página 04.

Escolástica é uma mulher negra e, por isso, não tem sobrenome. O primeiro nome não foi desejo dos pais. É criação de um homem branco, provavelmente o dono dela. Escolástica era escrava na cidade de Santos em meados do século XIX. Uma desconhecida dos livros de História, que cometeu um crime e permaneceu presa, no mínimo, por 12 anos.

Entre 1843 e 1855, a escrava saiu da extinta Cadeia Pública, onde hoje fica a Praça da República, apenas uma vez. Ficou doente e precisou de tratamento na Santa Casa de Misericórdia. Depois, retornou à cadeia, que abrigava, em média, 15 presos.

A história de Escolástica morre neste ponto. Não se sabe porque foi presa. Acredita-se em crime grave pelo período de detenção, que pode ter sido maior. A data e o motivo da morte dela são desconhecidos. Se a escrava morreu ou não na cadeia, qualquer resposta é teoria sem fundamentação.

As informações sobre Escolástica aparecem nos recibos de despesas da cadeia. Ela custava, em 1843, 3100 réis mensais. Os detentos, chamados de presos pobres (redundância que vale até hoje), eram sustentados pela Câmara Administrativa, que cuidava das questões públicas de Santos. A redundância do nome é a carga de ironia do Estado.

Os recibos tinham a assinatura dos carcereiros e atendiam à lei, que determinava às câmaras a assistência aos presos.

A vida de Escolástica, contada pelos recibos, fascinou a estudante de História Mariana Gama Cardoso, de 20 anos. Ela integra a equipe que analisa e organiza os documentos da Câmara, entre 1808 e 1889, ano da Proclamação da República.

O Fundo Câmara, nome dado ao projeto, envolveu mais três universitários, sob a coordenação da historiadora Rita Márcia Martins Cerqueira. A meta é concluir a classificação de todos os documentos no segundo semestre deste ano. O acervo está guardado no Arquivo Permanente do município, em um prédio alugado na rua Amador Bueno, no Centro.

Além do material do século XIX, há meia dúzia de documentos do século anterior. O mais antigo data de 1745. A estimativa é que sejam de 60 a 70 mil documentos. “Há uma falha de tempo. Percebe-se que muitos documentos foram perdidos”, explica Rita Cerqueira.

Outra curiosidade do acervo é a Ata da Câmara, que trata da Independência do Brasil, em 1822. O texto mostra o apoio dos políticos da cidade à mudança de poder e ao novo imperador.

O palco - A papelada é de caráter administrativo e foi localizada no início dos anos 90 embaixo do palco do Teatro Municipal. De lá, as caixas foram para o Centro de Memória, que ficava no Outeiro de Santa Catarina. O tratamento começou em 1993 e foi paralisado diversas vezes. Em 1996, os documentos passaram para Fundação Arquivo e Memória.

Para a historiadora, os papéis não indicam diretamente a trajetória política da cidade. Um exemplo é a Guerra do Paraguai. Só percebe-se o interesse da Câmara pelas atas administrativas, como a reclamação de “excesso de pólvora nos armazéns”, indicativo de prevalecia o estado de guerra. “Quem quiser procurar política deve ler nas entrelinhas”, afirma Rita Cerqueira.

O trabalho é minucioso, detalhista, metódico. Os pesquisadores lêem todos os documentos. Eles identificam o tipo de texto (ofício, por exemplo) e a qual área administrativa pertence, de acordo com uma classificação elaborada no próprio Arquivo Permanente. Depois, o documento recebe um código, passa por tratamento manual, é ordenado por data e guardado em envelopes com papel especial.

De acordo com a estudante Mariana Cardoso, este trabalho permite conhecer com mais profundidade o passado da cidade. “É a parte mais gostosa. Leio o documento e conheço o dia-a-dia de Santos.”

Mais dois anos - O sonho destes pesquisadores é iniciar, ainda em 2010, a identificação e classificação dos documentos do Fundo Intendência, de 1889 a 1907, data em que Santos passa a ter Prefeitura. São 160 caixas de documentação. “Se houver dedicação exclusiva, acabamos em dois anos”, conta a historiadora.

A vida de Escolástica ainda é um livro aberto. A presa pobre, que passou a custar 4960 réis em 1855, pode ser alvo de investigação. Ela é um dos personagens que fascinam estes historiadores, atraídos por pilhas de papéis amarelados, muitos em processo de deterioração.

Os olhos deles brilham quando falam sobre a dinâmica de uma cidade que se modificava. Um lugar que pulou de três mil para 50 mil habitantes em 80 anos. Um lugar onde os personagens têm suas micro-histórias desveladas em requerimentos, ofícios e contratos. (MVB)

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