As crianças mimadas

A mania se espalhou. Jogador de futebol, quando descontente, faz cara de choro em público, esperneia, promete birra e até soca o banco de reservas, entre outras artimanhas para mostrar que ali está uma vítima. São reações que mais se parecem com as de crianças mimadas do que atitudes de um adulto, profissional e recebedor de um salário – entre outros privilégios – bem acima da média do trabalhador brasileiro.

As manifestações infantis se espalharam por vários clubes. Não é somente uma atitude dos mais jovens, por vezes perdoáveis pela própria imaturidade. Piores são os que recebem para orientá-los e acompanhá-los na rotina do circo do futebol. Empresários, treinadores, assessores e puxa-sacos que se omitem ou se escondem quando seus contratantes ou contratados aprontam. Transferem a responsabilidade, estragam a mercadoria, na perspectiva deles.

È evidente que nenhum jogador gosta de ficar no banco de reservas ou ser trocado por outro durante uma partida. Espera-se pelo descontentamento. Não falamos de baratas, mas de sujeitos treinados para ganhar, para serem competitivos em nível elevado.



Mas há uma distância considerável entre desempenho e choradeira para os jornalistas, muitos condescendentes e prontos para alisar o menino chorão. Poucos jogadores, por exemplo, entendem de tática. A maioria finge entender. Sei que muitos técnicos também fingem conhecer, mas a birrinha não escolhe treinador.

Cicinho e Washington, do São Paulo, foram choramingar para a imprensa quando esquentaram o banco. Edu Dracena ficou nervoso quando saiu diante do Corinthians, no último domingo. Neymar fez cara feia e sequer cumprimentou Madson, que entrou no lugar dele, no mesmo jogo. Insatisfação com treinador se resolve com o próprio treinador, dentro do vestiário. Os contratos prevêem titularidade eterna? Adultos argumentam. Crianças ameaçam e agridem.

Pior fizeram os jogadores do Flamengo quando o técnico Andrade foi demitido. Vagner Love e outros embarcaram em uma batucada como protesto. Samba em plena crise pela seqüência de maus resultados. O atacante gritava: - É brincadeira! É brincadeira. Era um recado para a presidente do clube, Patrícia Amorim, depois desmentido diante da repercussão negativa.

Jogadores de futebol são empregados de uma instituição. Ganham muito bem para cumprirem suas tarefas o mais próximo possível da perfeição. Como qualquer trabalhador, têm deveres e direitos profissionais. Se os jogadores estão descontentes com a condução do clube, organizem-se e procurem a direção. Mesa de negociação, como qualquer empresa minimamente organizada. Adultos negociam. Crianças mimadas esperneiam.



A vida privada dos jogadores de futebol nunca me interessou. Se eles bebem ou fumam fora do ambiente de trabalho, traem as esposas ou saem na porrada em porta de churrascaria, são ações secundárias, talvez irrelevantes. Eles são sujeitos conscientes de suas responsabilidades e limites. Se fulano passa a noite na gandaia, treina normalmente e joga bem no final de semana, a vida segue. Leitor, alguém sabe o que você faz fora do ambiente de trabalho?

O problema é quando as estações se misturam. Os quatro jogadores do Santos, que chegaram – segundo relatos dentro do clube – quatro horas atrasados à concentração, não viram grande mal nisso.

O que aconteceria com você, leitor, se chegasse quatro horas atrasado no trabalho, com a justificativa de que estava numa balada? Quais seriam as conseqüências para você? E se você fosse o chefe? Quais medidas tomaria? E se você fosse um colega? O que pensaria?

Não vou entrar no grupo dos que querem ver os meninos pelas costas, mas penso que a punição foi correta. A reação dos garotos eleva a gravidade do caso. Estão acima do bem e do mal? Os contratos deles estabelecem privilégios de horários?



Sócrates, quando atuou pelo mesmo time em final de carreira, tinha uma cláusula no contrato que o isentava da concentração. Palavras do doutor, que vê como um reconhecimento pelos anos de estrada. Os moleques começaram ontem! Adultos conquistam benefícios. Crianças resmungam, batem o pé e ficam contra o papai.

Jogadores de futebol são sujeitos, muitas vezes, difíceis. Recebem pressões que a maioria das pessoas desconhece. Têm a privacidade devastada, revirada ao ponto de não poderem sair de casa ou praticarem tarefas básicas do cotidiano.

Muitos atletas saíram da miserabilidade ao estrelato em poucos dias. Não foram preparados para uma mudança repentina, que atordoaria a maioria dos mortais. O mundo em volta também balança, como um terremoto de seis pontos na escala Richter. Famílias e amigos são envolvidos em um circo de dinheiro, poder, aproveitadores e relações promíscuas e perversas.

O cenário alivia a carga nas costas do jogador de futebol, mas não o exime de responsabilidade. Ninguém quer cordeirinhos ou coroinhas que rezam as cartilhas repressoras dos clubes de futebol, gerenciados – inclusive – por pessoas para quem não se deve mostrar a carteira.

Jogadores mal orientados trocam de clube a cada problema que criam. Enriquecem os agentes, outros intermediários e bajuladores. São atletas que não dão conta da pressão e precisam de apoio para não afundar na carreira, tão curta quando atribulada.

O caso de Adriano é sintomático. Não sei se o jogador tem problemas com bebida, se ajuda o crime organizado ou brigou com a noiva e se reconciliou. Mas a instabilidade e a desorientação custaram a ele uma Copa do Mundo, que estava garantida. Em dois anos, vai jogar pelo quarto time.

Nas transações, é óbvio que muita gente ganhou dinheiro. E o que ganhou Adriano? Foi escolha própria ou indução aos erros? O fato é que o atacante terá 32 anos no próximo Mundial. Ainda terá tempo de recuperar a carreira? O título de Imperador é uma miragem nos livros de História? A Roma será a redenção ou a última chance entre os melhores?

Os jogadores, detentores de uma pilha de privilégios, sucumbem facilmente à vaidade e à soberba. Quando isso acontece, eles normalmente viram as costas para o torcedor e para os colegas. Futebol, para dizer o óbvio, é um esporte em que a coletividade alicerça o sucesso individual. Na prática, o craque depende e gera dependência ao carregador de piano, com obrigações também dolorosas.



Como torcedores, perdoamos demais as transgressões e os chiliques dos jogadores de futebol. Confundimos ídolos (falsos?) com deuses. Ficamos cegos pelo fanatismo e pensamos que um jogo no final de semana é suficiente para apagar todos os “problemas internos”, como repete um treinador de gravata.

As crianças mimadas, a longo prazo, poluem o ambiente, minam o tal espírito de grupo, derrubam os treinadores para manterem os vícios. E, nós, torcedores, no auge da ingenuidade, os colocamos em pedestais hoje, mesmo sabendo que amanhã vão para outro endereço, atrás de dinheiro e novos brinquedinhos.

Celebridades ficam famosas, abalam as estruturas, provocam sentimentos de afeto e ódio, geram escândalos e desaparecem na próxima edição. Ídolos ficam famosos, abalam as estruturas, provocam sentimentos de afeto e ódio e, pelos exemplos, jamais são esquecidos.

Celebridades insistem na mediocridade do erro, sentadas na comodidade das vítimas. Ídolos corrigem rotas, sem cara de choro ou pedido de misericórdia.

Comentários

Unknown disse…
Ai que delícia ler essa crônica. Formidável!!! É bem isso mesmo, crianças mimadas, sem educação ou limite algum, mas devemos em grande parte culpar tb a mídia que como vc bem disse transforma em celebridade instantânea e volátil um monte de gente sem noção!! Profisionais tem comprometimento com o ofício e não com os flashes!!! E ídolos só mesmo os de conteúdo, longevos e com alguma mensagem a transmitir, no mais é apenas mídia, comércio, vida curta.
Parabéns!!!
alano_luiz disse…
OS SERES HUMANOS POSSUEM FRAQUEZAS INATAS Á TODOS NOS, MAS O JOGADOR DE FUTEBOL EM NOSSO PAÍS TÊM UMA FUNÇÃO DIFERENTE, ELE REPRESENTA AQUELE INDIVIDUO MUITAS VEZES QUE SEM O FUTEBOL NÃO TERIA ASCENÇÃO SOCIAL NENHUMA, A SOBERBA COMO O ARTICULISTA COLOCA E A MATURIDADE SÃO PECADOS E VIRTUDES QUE NÃO SE ENSINA SEM SER, TAMPOUCO SEM VIVENCIA-LAS. NO COMPORTAMENTO PROFISSIONAL EM QUALQUER ARÉA REQUER UMA DISCIPLINA, MUITO MAIS ACENTUADO NO CASO DOS ATLETAS DE FUTEBOL PROFISSIONAL. PARABÉNS MARCÃO.
Anônimo disse…
Show de bola...
Até sei que todos temos uma criança interior, mas ultimamente o que temos visto são algumas totalmente mal resolvidas! O que acaba gerando alunos mimados, esportistas mimados, políticos mimados, profissionais mimados e por ai vai...
É isso ai Marcão!!!! Um grande abs,
Arminda Costa