O novo Gerson

Costumo ver sozinho as finais de campeonato. A reclusão voluntária talvez seja uma maneira de não se contaminar pela paixão, a esperança de enxergar algo diferente na partida, com um pouco mais de racionalidade. Sempre acabo vencido por algum tipo de emoção, normal e necessária para um jogo importante de futebol. Pode ser nervosismo, ansiedade, admiração ou inveja.

Na final entre Santos e Santo André, foi meu pai quem melhor definiu a diferença do jogo. Ele, santista, logo após a final, entrou no quarto e me disse:

- O Ganso é o novo Gerson!

Fiz comentários triviais sobre o jogo, pois precisava pensar a respeito. Era um título muito forte para um atleta de apenas 20 anos. Um peso colocado nas costas de alguém que já carrega a 10 do Santos. Só número da camisa é a história de quase um século e a trajetória do maior ídolo do esporte. Lançar o canhotinha sobre o santista poderia ser sadismo.

O fato é que, sem o peso sugerido, a maioria dos jogadores cai de quatro, chora no quarto, se esconde com as pernas trêmulas. Ou foge para outras bandas e reina em territórios menores.

Meu pai está coberto de razão e merece o crédito pelo título deste texto. A final no Pacaembu foi memorável. A formiga quase derrubou o elefante-leopardo. Não conseguiu porque este animal não é paquidérmico. É veloz. Mas Davi quase cumpriu seu destino diante do gigante.

A final será lembrada por todos os ingredientes: cinco gols, quatro expulsões, o pequeno que espremeu o grande, o Santos com oito atletas no final. Mas o dono da história foi Paulo Henrique Ganso. Ele liderou o time quando o alarme disparou. Liderou o Santos aos 20 anos de idade. A cena mais emblemática foi quando ele se recusou a deixar o campo. Exausto, pediu ao treinador Dorival Júnior para ficar. Neymar e Robinho já estavam fora. Alguém tinha que distrair a formigas com astúcia.

Ganso personifica o que mais precisamos no futebol de hoje: um camisa 10. Legítimo! Canhoto como Gerson, o meia do Santos indicou que possui a consciência dos craques. Deu um passe filho de Sócrates para o segundo gol de Neymar. E segurou a bola na frente quando era a hora do elefante se proteger. Um garoto que parecia ter 15 anos a mais. Um idoso, cheio de sabedoria no corpo de menino.

Ganso é mistura rara no futebol de hoje. Ele é um meia clássico, de passes precisos e verticais. Joga com a lucidez de quem alimenta os artilheiros e surpreende as defesas com assistências adocicadas para o gol. Corre de jeito esguio, olhando para frente, com foco na criação e respiração ofegante pelo gol, pelo lance decisivo nas proximidades da grande área.

Ganso poderia ser engolido pela modernidade cruel da força física, da marcação sem limites, do medo de perseguir o gol, da prevalência pela destruição que nasce junto com os volantes viciados em passes laterais.

Paulo Henrique prova que o criador sabe ser poeta quando destrói. Mata com um sorriso para a vítima. O meia do Santos, por vezes, jogou como uma espécie de segundo volante, solidário a Arouca, o homem destinado a sofrer, a sobreviver pelos destroços da jogada alheia.

Paulo Henrique Ganso é o oásis no deserto de volantes e meias covardes. O Santos foi abençoado com um camisa 10. Nos demais times brasileiros, temos homens que vestem o número por circunstância, jamais por vocação.

Ganso é vocacionado à missão da principal camisa. Tem a paciência dos diferenciados. Foi rebaixado para os juniores depois de debutar entre os profissionais. Esperou e voltou melhor. No jogo de hoje, ele entendeu o papel de condutor, conforme declaração publicada no portal UOL: “Chamei a responsabilidade, pois senti que deveria fazer isso. Com a camisa 10 da equipe tenho que ter essa postura. Não quis sair e fui premiado com o título.”

Ao se recusar a sair, o jogador não desrespeitou o técnico. Apenas viu o jogo de maneira mais cristalina naquele momento. Dorival Júnior, em tempos de técnicos engravatados, donos de projetos e auto-referentes, suou uma das qualidades de um líder: saber o ponto em que um comandado toma a decisão decisiva.

Ganso também é líder. Mas age como eminência parda, menos badalado, menos festivo, menos acrobático. Usa o malabarismo para os outros. Mantém a serenidade e segura a bola não por ser fominha, mas por aguardar a hora do bote e acalmar os colegas. É claro que, durante o campeonato, foi agressivo e até violento, comportamentos perdoáveis para um jovem sob pressão.

Ganso se parece com Gerson. Lembra o gênio. Ainda não o é. Mas tem o tempo a seu favor, o que pode ser uma vantagem ou um fardo. Os jogadores comuns temem o dia seguinte. Os craques encaram como nova oportunidade. Parece ser a vocação de Ganso.

A campanha para tê-lo na seleção a partir de 11 de maio é justa. Atacantes, temos várias opções nos principais times europeus. Neymar seria mais um na lista, aquele menino a ser preparado para a próxima copa.

Na posição de Paulo Henrique, apenas Kaká. Dunga não vê Alex, do Fenerbahce, tampouco enxerga Diego, da Juventus. Se ele tiver que escolher um nome nas praias de Santos, que o técnico leve o Ganso. A camisa 10 ainda é a diferença entre os artistas e os operários.

Comentários

Bruno H. Paes disse…
Gênio. Simplesmente um gênio!
Luiz disse…
Ontem depois do jogo, comentando no blog de um amigo, pensei em usar esse tipo de comparação: Ganso estava chegando ao nível dos maiores meio-campistas da história do futebol brasileiro.

Talvez por recato, preferi elogiá-lo sem explicitar a comparação. Exagero meu. Ele merece a citação.

Mais tarde vi alguém comparar seu futebol ao de Zidane, com tudo que isso significa. Pensei um pouco e vi que a comparação fazia todo sentido.

Até porque, reparando bem, Gerson e Zidane são frutos da mesma árvore, diria até do mesmo cacho. E com certeza ambos ficarão honrados com o novo membro dessa seletíssima confraria.
Foi lindo demais o gesto de Ganso. Me deixou muito, muito emocionada. Foi um gigante em campo.
Marcos DC disse…
Rapaz... que texto. Parabéns pelo fino trato com as palavras e lucidez plena. Fiquei "boquiaberto" com o que li. Meus parabéns.
Claro que o Ganso ainda não é um Gerson, mas que esta fazendo vestibular para ser... isso esta.
Abraços.
Luis Illanes disse…
Texto fantástico! Ler isso depois do que passamos ontem é lavar a alma. Ganso e Neymar na seleção!
Carol disse…
Santista fanática que sou, ouso a não ser tão parcial quando falo do Santos, mas nesse time atual não cabe modéstia.
Paulo Henrique além de extremamente hábil é inteligente e até parece advinhar: Passes precisos, mas indecifráveis aos adversários.
Um verdadeiro craque que merece todos os elogios!!!
Parabéns pelo texto, pois além de coroar um merecedor guerreiro, exprime magnificamente tudo aquilo que o torcedor santista se encanta ao ver nosso camisa 10 adentrar nos gramados.
Suas palavras foram mágicas!!!
joão thiago disse…
Sou Corinthiano, mas tenho que reconhecer, Ganso é a fina flor do meio campo, uma verdadeira luz de criatividade em uma região do gramado tão castigada nos últimos anos. Ele consegue fazer um trabalho único de ser a moldura perfeita para a beleza plástica de Neymar e Robinho. Uma moldura com quase tanto valor quanto o quadro. Parabéns Ganso pelo título, pela coragem e pela ousadia. Porém, especialmente, por reconhecer e entender o valor e o peso que a camisa 10 do peixe tem.
O novo Gerson? Sem dúvida!

JT.
Anônimo disse…
Seria ótimo se o próprio Ganso lesse esse texto. Com a personalidade que tem demonstrado, a inteligente distância que começa a manter dos badalados Neymar e Robinho, tais palavras, ao contrário de despertar uma infantil vaidade, fariam Ganso saber que, cada vez mais, está no caminho certo. Bom, seria ótimo se o Dunga lesse também... Belo texto. Parabéns.
Duanne Ribeiro disse…
Tudo bem que o Ganso jogou muito e tal, mas chamar o Santo André de Davi e de formiga é tudo prepotência santista. O Santos é um time tecnicamente bom, mas que se desestabiliza fácil; e, quando isso acontece, fica muito sem liderença e muitas vezes sem foco. O Santo André parou de jogar no segundo tempo. Parece que esperou o Santos cansar.

E eu que achei que um gol em menos de um minuto e o pânico de toda a torcida até a última bola na trave tinha sido o bastante para acabar com a arrogância.
Duanne, uma pergunta e um comentário. Concordo com você que o Santos sofre de soberba. Virou escravo da vaidade. Mas, quando você se refere à arrogância, você fala do time ou do autor do texto? O comentário: engana-se quando fala de prepotência santista. Escrevo sobre futebol. Não torço para o Santos. Abraço!!