O jornalismo das pessoas comuns

Assisti, na noite de ontem, ao programa Profissão Repórter, que acompanhou os trabalhos de resgate e remoção de corpos no Rio de Janeiro e em Niterói, locais atingidos pelas chuvas, na semana passada. Esperei convicto que o trabalho dos repórteres fosse coerente com a história do programa: o olhar sensível e criterioso sobre as ações e reações de pessoas anônimas.

O Profissão Repórter é o programa que melhor faz jus ao nome na rede Globo. Hoje, é mais importante que o “pai” Globo Repórter, que se rendeu a temas que agradam a classe média urbana ou a documentários estrangeiros sobre “mundos exóticos”.



O “professor” Caco Barcellos trabalha com o apoio de jovens repórteres que, em conjunto, traduzem - por exemplos - a postura ética e técnica da profissão. Isso acontece em todas as etapas da construção da notícia, desde a escolha das pautas até a construção da narrativa, o que envolve a relação com as fontes e os caminhos escolhidos pela edição.

A obra final, no sentido mais amplo, representa certas características clássicas do jornalismo, que me parecem esquecidas ou ignoradas numa época em que se valoriza o show, os medidores de audiência e o merchandising. Estes três elementos simbolizam o flerte da reportagem com o consumo e o entretenimento.

Uma das características não se ensina nos bancos da universidade. Repórter precisa ser sensível. Não é se emocionar somente, mas entender os sentimentos do outro, normalmente em situações extremas, e se relacionar com delicadeza com a fonte.

A sensibilidade é um meio de aproximação para tornar concretos conceitos que soam lindos na teoria, como objetividade e imparcialidade. Jornalismo é subjetivo e parcial, para dizer o mínimo, muito diferente de ser tendencioso ou venal. O repórter é um sujeito que deve perseguir tais conceitos, mas adequá-los a um relacionamento sensível com a fonte – quando exposta sem desejar - e com o público.

O programa dá um ar de naturalidade para essas questões. È como se tais comportamentos fossem inerentes ao jornalismo contemporâneo. Infelizmente, a sensibilidade se perdeu em algum lugar onde prevalecem a exploração do outro e os repórteres-icebergs, que encaram os fatos como parte exclusiva do processo industrial. Muitos escravos da pauta ficaram cegos ao ponto de não notar a notícia que salta ao lado, desesperada para ser apurada e contada ao mundo.



No Profissão Repórter sobre as chuvas, uma das jornalistas tomou a decisão de parar de gravar e apenas conversar com uma das sobreviventes. A mulher perdeu o marido e tentava liberar o corpo dele no Instituto Médico Legal. Érika não dormia há dois dias e não se lembrava de ter conhecido a repórter no dia anterior. A jornalista decidiu que o diálogo era o melhor caminho naquele momento. Nada de exposição da dor.

Antes, a mesma repórter precisou se recompor diante de tantos corpos que brotavam em meio ao lamaçal. A postura humana, que deveria ser redundante, é louvável como retrato da tragédia que modifica todos os envolvidos. Ter sensibilidade é carregar dentro de si, como fator inevitável, um pedaço dos acontecimentos relatados. Repórter com sensibilidade nasceu assim; não pode ser formado, somente lapidado.

O programa também nos ensina quando resolve focalizar os dramas ou o cotidiano das pessoas comuns. Talvez seja, para mim, o maior mérito destes jornalistas. Afastar-se dos gabinetes, das declarações cínicas e redundantes de fontes viciadas, dispensar as pessoas que mal resistem aos holofotes e, acima de tudo, valorizar as histórias dos anônimos.

A equipe de Caco Barcellos mostra como cada pessoa, dentro de seu microcosmo, é capaz de proporcionar relatos especiais, únicos e verdadeiros. O jornalismo-espetáculo faz o inverso quando transforma estes relatos em show ou mercadoria melodramática. Isso significa, em última instância, não ouvi-las.

Depois de nos ensinar a olhar, o programa mostra como repórteres devem ouvir. Fico com a percepção de que os repórteres compreendem ou sentem que o entrevistado tem algo a dizer. E isso não tem relação alguma com posicionamento social, cargos ou exercícios de poder. As pessoas comuns abrem suas vidas, muitas vezes, por necessidade, por abandono social. Falam para pedir socorro. Precisam de um microfone para desabafar suas experiências, quando ninguém as escuta, por negligência, preconceito ou estupidez.

Neste ponto, os jornalistas do Profissão Repórter exercitam uma postura além da busca obsessiva pelas aspas, pelas declarações bombásticas. Os relatos têm ligação entre si, ainda que em lugares e momentos diferentes. Cabe ao jornalista alinhavar as histórias como se fossem uma teia, com maturidade para avaliar que repórter conta e contextualiza acontecimentos, e não os protagoniza.

Outra lição do programa é praticar jornalismo como função social. Hoje, o jornalismo foi afetado em excesso por critérios de mercado, que cegam os profissionais diante da notícia. A relevância social do assunto é garantida se há a possibilidade de vendê-lo como atrativo de audiência.



Na equipe de Caco Barcellos, a escolha das pautas se prende, quase sempre, aos elementos que compõem as notícias. Falo de escolhas técnicas, que seguram o público pela qualidade da narrativa.

O jornalismo, na concepção clássica, está ligado à ideia de um olhar social sobre o mundo. Social no sentido de fornecer ao público elementos para que possa se situar diante dos acontecimentos. Penso que o espectador só consegue se situar se houver identificação com as informações. E a identificação ganha corpo com histórias do dia-a-dia, sem a contaminação pelo glamour, com seus artificialismos efêmeros.

O Profissão Repórter nos indica que o caminho para o jornalismo é contar histórias. Em parte, muitos repórteres perderam a ansiedade quando pressentem uma boa história. São os relatos que exemplificam os acontecimentos. Os personagens auxiliam na construção do contexto, que facilitará a relação entre os fatos.

O programa, quando opta por dar voz aos anônimos, desenha o jornalismo como sinônimo de reflexão individual e senso de coletividade. Cada história compõe o mosaico que nos permite iluminar a nossa própria história. É um exercício de auto-valorização, de forma que o sujeito se vê como parte do enredo, integrante da vida lá fora.

No final do programa sobre as chuvas no Rio, houve um diálogo entre um morador e o repórter Caco Barcellos. O morador pediu que o jornalista visitasse o bairro daqui seis meses para verificar como está o local, hoje ponto turístico e/ou palanque de promessas para políticos e demais candidatos enrustidos de plantão.

O morador disse a Caco que se tratava de um favor. O jornalista respondeu: - é nossa obrigação!

Em tempos de celebridades, polêmicas vazias, espetáculos de horror e marketing, a conversa poderia soar hipócrita para muitos jornalistas. São tantos os assuntos esquecidos pela imprensa que, por vezes, prefere-se a exposição exaustiva de um caso. E que não representa o todo.

Para mim, o diálogo entre morador e repórter soou verdadeiro, como uma aula que nenhum livro acadêmico consegue igualar.

Comentários

Débora disse…
Que bom encontrar um texto tão bacana na primeira visita ao blog. Não assisti a essa edição sobre as chuvas no Rio, mas o Profissão Repórter é, sem dúvida, um frescor de verdade e humanidade em meio a tanta besteira que vemos por aí.
Abraços da ex-aluna
Bárbara Renilze disse…
Eu sempre acreditei que o caminho do jornalismo deveria ser o das grandes reportagens. Repórter e produtor têm mais é que ir pra rua. Sou contra deixá-los na redação, atrás de um monitor e pendurados no telefone. Eu mesma já fiz isso, tantas vezes, contrariada.
A notícia está onde as pessoas estão: em uma reunião de moradores, nas periferias, em ações sociais, mutirões, nos presídios.
O jornalismo tem que contar histórias e, quando se conta histórias de pessoas comuns, mostrando a realidade, sem maquiagens, sem pré-conceitos, o jornalismo cumpre o seu papel.
A Rede Globo precisa "abolir" essa idéia de "humanizar" o jornalismo, tirando a gravata e os dos ternos dos repórteres, fazendo os âncoras levantarem da bancada e baterem papo no meio do jornal.
Não há motivos para humanizar o jornalismo porque ele é Social. E, quando ele é feito do jeito que tem que ser feito, o sucesso é garantido. Caco Barcellos é mesmo mestre nisso. Não é à toa que o Profissão Repórter é o que é.
Belo texto. Sou fã do Profissão Repórter pq tem o olho do jornalista, provoca a reflexão, tem o faro da boa entrevista. Lapidado brilhantemente por Caco Barcellos que dispensa apresentações, esses meninos terão uma apurada visão do jornalismo de fato. E não essa distorcida exploração da dor alheia em que se transformou muitos programas ditos jornalisticos. Ali é jornalismo sangue puro!!! Parabéns pelo olho e sensibilidade!!!
Aline Monteiro disse…
O programa é, sem dúvida alguma, uma completa aula de Jornalismo. E mais do que isso: É uma injeção de ânimo para quem ainda acredita no Jornalismo Social.

"São os relatos que exemplificam os acontecimentos. Os personagens auxiliam na construção do contexto, que facilitará a relação entre os fatos." Belíssima frase.