Meu amigo, o mosquito

Estou com dengue há cinco dias. Aproveito a liberdade de 45 minutos, uma hora, proporcionada pelo remédio, para escrever este texto. Deverá ser escrito em partes, até porque o vírus que me mantém em prisão domiciliar é disciplinado e pouco disposto a quebrar regras. Computador, somente para as coisas mais básicas, como justificar ausência no trabalho e ler algumas notícias.

A liberdade é restrita. O corpo agüenta um pouco de Tv, uma leiturinha de jornal, banho (não o de sol) e uma comida sem gosto. Quando o efeito do remédio termina, retorno à cama.

Antes de te pintar de vermelho, mesclando com o branco de sala de aula, o vírus provoca dores e febres. No começo, elas trabalham juntas, sem largar o paciente, para reafirmar quem manda durante a semana da dengue.



A doença te obriga a conviver consigo mesmo. Quando você não dorme, está deitado. Quando você deitado sem dormir, só te resta pensar. De olhos fechados, porque ardem. No começo, dá até vontade de fazer alguma avaliação – mania de professor – da vida, mas até a mente é controlada pelo vírus. Você dorme novamente.

Dormindo demais, sobram os sonhos. Não costumo me lembrar deles, mas, ao longo de cinco dias, recordo-me apenas de ter me tornado baterista da banda de rock Kiss. Meu amigo Edwar se tornara o vocalista. Explicações? A responsabilidade é da febre. Temos uma imagem a preservar. Antes ou depois do Kiss?

A dengue te torna um número. Era o 314 no hospital. Ali, você espera por horas e se torna um obsessivo por luminosos e pelo som único que avisa quando o número muda. Primeiro, a fila para dizer que está lá. Eu existo e tenho dengue. Depois, a fila para ser chamado pelo médico. Eu existo, tenho dengue e preciso de ajuda. Terceiro, a fila para fazer o hemograma. Eu existo, tenho dengue e preciso saber o tamanho do estrago.

Quando você é encaminhado para o soro, torna-se especialista: explica os sintomas para o paciente ao lado, fala dos próximos passos, dá seu relato a alguém que pegou a doença um dia depois de você.

Olhando para aqueles corpos moídos e rostos melancólicos na sala de espera do hospital, poderia dizer que percebo a minha insignificância frente aio mosquito. Não, percebo o quanto é canalha a postura do poder público de Santos (SP) diante da doença. Edwar, o amigo do Kiss, disse com sabedoria que a doença é pré-histórica. Não deveríamos estar submetidos a ela. A prevenção é pré-histórica, em sua fragilidade e ineficiência.



A proposta de uma lei que permita a invasão de residências seria ótima se a Prefeitura não fosse telhado de vidro. Propor uma lei como esta, após milhares de casos, soa canalha. É um ótimo balão de ensaio para transferir, no mínimo, uma parcela da culpa pelo descontrole da dengue.

A doença vai e volta há mais de dez anos e vemos somente duas posições. Quando a dengue recua, os méritos são da Prefeitura de Santos, que se vangloria de suas campanhas simplórias. Até os mutirões nos bairros ganharam papel secundário.

Quando a epidemia renasce, a culpa é sempre da população. Um representante da Prefeitura poderia se sentar na sala de espera lotada de qualquer hospital para perceber que muitos agentes jogam para a torcida. Ou para o mosquito. Ouvir os depoimentos dos doentes. Muitos conhecem agentes de saúde de ouvir falar.

Outros falam que parte dos agentes é negligente diante dos focos ou sequer entra nas moradias. Fazem duas ou três perguntas e correm para preencher planilhas. O mosquito, analfabeto, não as conhece e cumpre seu destino.

Estar com dengue nos faz pensar sobre o que nos cerca. Da seriedade ao bom humor. Sem entrar na pergunta inútil: aonde ou por que peguei a doença? Basta andar pela cidade.

De quebra, ganhei um furúnculo na panturrilha esquerda. Saio do médico e vou à benzedeira?

Até a próxima dose de Dipirona.

Comentários

Daniel Simonian disse…
Muito bom!
Melhoras, Mestre!
Unknown disse…
Melhoras, sei o que é isso!!! Na outra epidemia!!! Que infelizmente é cíclica e cada vez mais poderosa!!
Renda-se. Fique dengoso. Muita hidratação e descanso.
Quando tudo estiver bem use a caneta e polemize mesmo, pq é pré histórica e mesmo assim vivemos em pânico todo final de verão, e não exatamente pq a população não sabe. Prédios públicos são o maiores focos!!! Não arruma o quintal como quer que a cidade seja arrumada? Até no orkut temos dengueville, é mole? Tudo de bom!!