Os pombos e os gaviões

O futebol tem um idioma próprio. Absorve linguagens como se fossem exclusivas. Aceita inúmeras definições, não importa a conta bancária do autor. Muitos termos se tornam jargões, ganham status de vocabulário técnico e se infiltram no cotidiano como se fossem naturais ao esporte.

As expressões nascem, muitas vezes, por comparação. Futebol é relacionado, por exemplo, ao palavrório de guerra, utilizado em momentos de muita seriedade, de competitividade. Jogos importantes são batalhas, que podem ser decididas por artilheiros, chefiados por capitães.

No entanto, o que me chama a atenção são as analogias com os animais. Em especial, as aves. Em especial, entre os goleiros. As aves que qualificam ou humilham este sujeitos esquisitos, de posição anti-futebolística, no final das contas.

Goleiros voam. Flutuam como se tivessem asas. Voam para aparecer na foto. Planam para valorizar o golaço de uma bola que perturbou o sono da coruja. Voam para evitar que o pombo sem asas – um chute violento – resulte em gol.

Quando falham, goleiros engolem frangos. Ou sofrem perus. Frangos e perus são aves vistas como de menor estirpe, associadas a um modelo gastronômico que os goleiros preferem não degustar. É o ato de engolir e assumir a digestão sozinho. As penas que ficam nas luvas funcionam como lembrança de quem jamais pode errar, com o risco de marcar o placar de maneira definitiva. O maldito 1 a 0, no finalzinho de uma partida decisiva. Uma falha pode custar o ano de trabalho, o campeonato tão sonhado em décadas de história do clube.

Na profissão de goleiro, penso que existem duas espécies de seres voadores: os pombos e os gaviões. Os primeiros são mais comuns, multiplicam-se rapidamente e podem ser vistos nas praças do futebol. Os pombos contaminam o jogo, estragam o prazer da festa. Representam um problema de saúde pública.

Os pombos são aves ordinárias, anônimas participantes da fauna do esporte. Estes goleiros voam por qualquer motivo, atrapalham-se pela insegurança e pelo medo de quem se aproxima. São goleiros pouco confiáveis, daqueles que o zagueiro olha para trás e não entende o que vê. Percebe somente que não pode delegar função ao colega.

Os pombos não compreendem que o futebol é um jogo de inteligência, de estratégia, de peças que se movimentam em posições desenhadas mentalmente, mesmo quando se improvisa. Os goleiros-pombos pulam sem necessidade, têm mãos de pau, incapazes de segurar a bola. Rebater se constitui na saída mais óbvia. Julgam-se mágicos por tentar adivinhar o passo do inimigo, olham para a bola e pensam:

- Tira esse bicho daí!!!

Os goleiros-pombos são previsíveis. Não atrapalham a dinâmica de uma partida. Talvez pararam ali, dentro da grande área, porque eram os donos da bola ou não conseguiam entender o namoro entre os pés e o brinquedo.

Pombos, raramente, viram gaviões. Os gaviões lêem o jogo, sem se arriscar ou buscar o charlatanismo da adivinhação. Gaviões costumam entrar na lista de animais extintos e podem ser identificados de longe. Estas aves imponentes provocam medo, respeito, confiança. Exalam segurança. Lideram os demais.

Os goleiros-gaviões têm absoluta consciência de que não se gasta pena em voo inútil. Esta espécie age com o instinto de posicionamento. É o goleiro se mexe pouco, fala o necessário e modifica com palavras o ritmo da equipe. O gavião voa somente na eminência da defesa. Pode errar, claro, mas aparece na foto por uma questão circunstancial, jamais como vítima fragilizada.

O primeiro gavião que vi em campo foi Rodolfo Rodrigues. Embora não seja santista, comprava o ingresso para vê-lo comandar um time de futebol. Expulsava atacantes da área com o olhar. Rodolfo jamais foi espalhafatoso. Isso é tarefa para os pombos. Rodolfo era preciso. Antevia a presa. Aos leigos, dava a impressão de adivinho, mas trabalhava como um estrategista.

A bola batia nele. Rodolfo Rodrigues parecia fingir de morto e ressuscitava, repentinamente, na trajetória do gol certo. Como naquela noite, na Vila Belmiro, que o goleiro uruguaio fez seis defesas em sequência, no mesmo lance, contra o América, de São José do Rio Preto.

Depois, vi Taffarel. Muita gente não o entendia. Era um típico gavião. Frio, calculista, pouco demonstrava as emoções. As defesas refletiam o comportamento. Enquanto pombos voam e caem tortos no solo, Taffarel dava um tapa na bola para escanteio sem sujar o uniforme. A discrição do goleiro gaúcho enganava os ingênuos, que se deslumbram com os vôos circenses das aves comuns.

Hoje, há vários gaviões que fazem ninhos na pequena área. O goleiro da Seleção Brasileira, Julio César, é um pombo que passou pelo processo de metamorfose. Virou o gavião que garante, muitas vezes, o emprego do técnico. No Brasil, Rogério Ceni é um velho exemplar da espécie. Cansado, com cicatrizes, mas ainda eficiente. Líder, respeitado, odiado e temido, joga com o corpo e economiza a batida das asas. Luta as batalhas necessárias, com a vantagem de respeitar a bola quando a tem em seus pés.

Diante dos exemplos de gaviões, como identificar as aves da outra espécie? Caro leitor, a solução é afetiva. Se você não confia no goleiro do seu time, se sofre de ansiedade quando a bola se aproxima da grande área, provavelmente o camisa 1 em questão é um pombo da gema. Se você não tem saudades dele, trata-se – cientificamente – de um pombo. A experiência e o treinamento poderão transformá-lo em um gavião, mas vale esperar por uma troca de penas, sem garantia de sucesso?

Comentários

Muito boa a sua descrição sobre pombos e gaviões debaixo das traves, falando em Júlio César, o doni está preparado para ser um goleiro reserva nesta Copa do Mundo? Ele nem sequer é mais titular na Roma, posição ocupada por Júlio Sérgio ex-reserva de Fábio Costa no time santista. Ele é pombo ou gavião? e quem deve ser o terceiro goleiro Gomes, Helton, Fábio ou o instável Bruno devido ao lobby carioca?
Lembro do Taffarel em 1994, muito questionado, afastado do Parma, por motivo de limites de estrangeiros em campo e ele ganhava forma na interior da Itália até em rachão durante a pré-Copa dos EUA.