O telefonema

O saco de estopa estava repleto de latas de alumínio, todas amassadas e prontas para a reciclagem. O peso deixava as costas dele curvadas. Parecia um pêndulo ao se mover. Somado à idade, a carga ambiental fazia com que ele caminhasse lentamente pela avenida, arrastando os pés sobre os chinelos um número menor.

Quando se está nas ruas há muitos anos, a aparência raramente condiz com o tempo de vida. É impossível dizer quantos anos tinha. Calculo em 50, 52 anos, embora a barba branca, o cabelo ralo e as rugas indicassem alguém com 65 ou mais.

Dei de cara com este senhor na saída de um prédio. O sábado à noite, para mim, terminava. Ainda não era meia-noite, mas estava cansado de uma semana cheia, um sábado de aulas e uma festa com tentadoras coxinhas e bolinhas de queijo. O cansaço habitual do mundo da classe média.

Cruzamos os olhares e ele me disse algo que não entendi. Talvez a fadiga, talvez a desatenção diante de alguém normalmente invisível para os olhos da maioria. Ele se encaixa no retrato de quem ocupa espaço na paisagem, sem interferir na trajetória dos personagens.

O senhor repetiu a frase. Pedia dinheiro, uns trocados. A mão, estendida, tremia. A voz era quase inaudível. A cabeça baixa transmitia a vergonha de ter que pedir dinheiro para alguém, que poderia ser seu filho. Ou tinha idade para isso.

Abri a carteira e tirei uma nota de R$ 2. Era o que tinha. O dinheiro eletrônico mais o medo paranóico – e a grana curta mesmo! – indicavam a carteira vazia. Ele apertou minhas mãos e agradeceu. Apenas disse: - De nada!

Depois de um sorriso mecânico e educado, me virei para seguir o caminho oposto. Ouvi a voz dele:

- Vou ligar para minha mãe. Acho que, com o dinheiro que juntei, posso comprar um cartão para telefonar.

A frase me fez parar. Atiçado pela curiosidade, cheguei perto dele e puxei conversa.

- Ligue sim. Mas por que resolveu ligar para ela?

- Recolhi estas latas por dois dias, mais o dinheiro que consegui; assim, posso pagar o interurbano para falar com ela. Amanhã é o Dia das Mães.

- Não deixe de telefonar. Ela deve estar com saudades.

- Não falo com ela há dois meses. Minha mãe pensa que trabalho por aqui. Não sabe que vivo na rua. Deste jeito!

- Mas o que você faz é trabalho.

- Muita gente acha que não.

A conversa foi interrompida. Não foi interrompida pelas pessoas que entravam e saiam do prédio, olhavam para nós como parte da paisagem e continuavam a caminhada, concluída com o barulhinho dos alarmes de carros na mesma quadra.

Paramos de conversar porque ele começou a chorar. Colocava uma das mãos no rosto e pedia desculpas. Apenas consegui dizer a ele que não precisava se desculpar. A surpresa e o constrangimento de ambos travaram o diálogo. O choro estava se tornando contagioso. O silêncio era o freio das minhas lágrimas.

Ele se despediu, colocou o saco nas costas e voltou ao arrasta-pé. Reforcei a importância do telefonema e agradeci pela conversa.

Confesso que tive vergonha de perguntar o nome dele, apesar de que – hoje – me parece uma informação irrelevante diante da generosidade com que o senhor partilhou seu desejo mais imediato, delicado e profundo. O objetivo me pareceu tão simples, mas tão complicado de ser cumprido, por causa de um modo de vida no qual o sujeito está preso a si próprio, sem possibilidade de mudança, de relações duradouras, de família, de perspectivas.

É a prisão de um rótulo de miserabilidade que o impede de ter uma história, de possuir passado, de almejar dias posteriores. Como se tudo começasse e terminasse na garrafa de pinga, símbolo da autopunição de ter pouco, da vontade de viver sempre o mesmo enredo de ausência.

No dia seguinte, contei à minha mãe a história do encontro. No final, choramos. Não havia o que comentar. Apenas entender e absorver. Acredito cegamente que foi o melhor presente que poderia dar a ela. Corrigindo: repassar a ela, pois o recebi na noite anterior.

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Levei alguns meses para escrever esta pequena história. Optei por publicá-la em tempos natalinos por crer que não importa a data, e sim o simbolismo dos fatos em torno dela. A pequena aula com aquele senhor que carregava um saco de latas amassadas – infelizmente, não era o de Papai Noel – se encaixa em qualquer comemoração que envolva o sentido mais amplo de humanidade.

Comentários

Anônimo disse…
Estou impressionada. Esse texto é muito bom, um dos melhores que já li. Comovente hein professor?!. São situações, corriqueiras que para a gente passa despercebido. Tenho certeza que já presenciamos situações semelhantes ou iguais a que você passou, e a grande diferença é que muito não tiveram a curiosidade de saber mais sobre a vida de tal cidadão, perdido nas ruas. Parece que o comodismo é tão grande, que a imagem passa a ser um caso normal no cotidiano. Passa a ser não, porque a frase dá sentido recente, e não é verdade. Isso já existe há milhares de anos. Só em tempos de confraternização, almas caridosas pensam em ajudar o próximo, nem que seja por um dia. A realidade é uma só, ninguém está nem ai com ninguém.

Parabéns!!
Marcia Leite disse…
Marcus,

Acho que você tocou no ponto nevrálgico:- O sujeito está preso a si próprio. Aos seus próprios muros e grilhões.

Tenho alguma experiência com moradores de rua e até já fiz uma reportagem que virou um curta,produzido na faculdade no primeiro ano do jor.Chama-se justamente " Pessoas Invisíveis".
Posso afirmar que a grande maioria deles está na rua por simples opção de vida. Posso assegurar também, que Santos é uma cidade extremamente generosa e solidária com eles.Basta olhar e reparar, há muita gente que se importa e que faz e muito pelo próximo. Talvez estas sejam também invisíveis!!

Inacreditável não é mesmo?