O palco do racismo

O futebol é uma arte tribal. O estádio funciona como ponto geográfico onde seres humanos amortecem as próprias identidades para expor a fé diante de símbolos maiores, sacros e dogmáticos. Ali, prevalecem o espírito de grupo, a crença coletiva e os sentimentos cegos diante de imagens santificadas pelos gols, defesas, vitórias e títulos.

O lado escuro da cegueira é que o futebol reduz, muitas vezes, a capacidade racional e crítica do torcedor, que se submete às decisões do grupo sem contestação. Pior: com a reafirmação de que o ato a ser praticado é a única saída.

As manifestações recentes de racismo por parte da torcida do Chievo contra o atacante Balotelli (foto abaixo), da Internazionale, durante partida pelo campeonato italiano são um sintoma sobre as relações sociais em toda a Europa. E compõem a face podre de uma manifestação cultural que serve de espelho para a leitura de diversas sociedades.



O racismo é uma das consequências de um processo econômico globalizado, que acelerou ou criou ondas de imigração, alterando o mapa étnico em todos os continentes. É prática potencializada, anterior à dinâmica recente da economia. A Europa, no caso do futebol, assina como o cenário mais visível, pela força financeira, exposição midiática, concentração de estrelas do esporte e poder político dos dirigentes.

A violência racial nas arquibancadas não deriva do campo. Isso ocorre nas brigas entre torcedores, na relação conflituosa com a polícia ou como reflexo do placar no gramado. Esta violência é pontual, explosiva e de curta duração como fato em si. Causas podem determinadas aqui com elevado grau de precisão.

O problema é a violência estrutural, que nasce fora do campo de jogo, antes das partidas, no cotidiano dos torcedores quando cumprem outros papéis sociais ou estão em outros círculos de relacionamento. Este tipo de conflito é direcionado, contínuo e acontece de maneira independente à partida de futebol. O racismo se enquadra neste ponto, fruto de doenças sociais e desequilíbrio econômico-financeiro. Com um tempero de valores culturais, alimentados pelos fatores anteriores.

Os times de futebol dos principais centros europeus são seleções internacionais. Há equipes na Inglaterra com somente um inglês entre os titulares. O mosaico internacional é comum também em mercados periféricos e emergentes como Rússia e Ucrânia. E mexe com a relação de identidade entre clube, atletas e torcida.

O futebol, neste sentido, se constitui em mais uma atividade econômica que segue a velocidade das trocas internacionais. O Brasil, por exemplo, exporta – em média – mil jogadores por ano. O foco é a Europa, mas há atletas espalhados por todos os continentes, com exceção da África. Endereços como Vietnã, China, Costa Rica e Bulgária têm jogadores brasileiros registrados nas federações locais.

O esporte não é causa do racismo e muito menos consequência. A discriminação racial está na alma das sociedades, impregnada pela intolerância e pela exploração do outro até o limite da diminuição de subjetividade. O sociólogo Octavio Ianni, em entrevista concedida à revista de USP em 1999, afirmou que os conflitos bélicos na primeira década do século XXI teriam como fator – direto ou indireto – o racismo ou a diferença étnica. Palavras transformadas em profecia.



O futebol, hoje feira de negócios sem freios, traz consigo o cheiro da impunidade, quando se pensa nas questões raciais. As punições são brandas contra todos os envolvidos, sejam clubes, atletas, dirigentes e torcedores. Quando alguma entidade esportiva determina sanções mais pesadas, a medida é derrubada a toque de caixa nos tribunais desportivos ou comuns.

A impunidade é histórica e resistente às alterações culturais. O futebol é palco do germe do racismo, introjetado fora do ritual de jogo. O Brasil é um exemplo disso. O Vasco da Gama foi afastado da Liga Carioca pelos demais clubes porque era o único que aceitava negros e mulatos na equipe na década de 20. Depois, o Fluminense ficou conhecido como “pó-de-arroz” por escalar jogadores mulatos maquiados. Ao suarem, eles expunham a verdadeira cor da pele, o que gerava provocações dos adversários.

Nesta década, há uma lista de casos de racismo dentro do esporte. O camaronês Eto'o ameaçou deixar uma partida do campeonato espanhol por causa de xingamentos de torcedores adversários ao Barcelona.(foto abaixo) Roberto Carlos e Cafú também foram ofendidos em estádios europeus. Torcedores poloneses atiraram bananas em campo por causa da presença de um atleta africano.



No Brasil, o ex-zagueiro Antônio Carlos – na época no Juventude (RS) – foi suspenso por ter esfregado o braço esquerdo em referência ao tom de pele de um atleta do Grêmio. E assim por diante!

Balotelli, nascido na Itália e filho de emigrantes de Gana, foi multado em sete mil euros por aplaudir ironicamente os torcedores do Chievo. O time dele, a Internazionale, em 15 mil euros. A Inter venceu por 1 a 0, gol de Balotelli.

Os agressores foram ignorados. Será possível alterar a mentalidade destes animais com aquelas faixas de afeto nas mãos de jogadores ao entrarem em campo? Ou filmes institucionais sensíveis nas principais emissoras de TV do mundo? É necessário esperar que o racismo no futebol alcance a curva da violência irreversível para que os tribunais esportivos sejam mais rigorosos?

Os racistas permanecem nas arquibancadas dos estádios, com seus cantos e gestos neandertais. Trocam de camisa, de endereço, de clube, de alvos, e mancham o futebol com o que há de mais primitivo no modelo tribal. No grupo, se escondem, se protegem, se organizam e agridem, sem o limite mínimo para que qualquer sujeito possa ser visto como civilizado. Com a omissão ou o aval dos engravatados que organizam a festa.

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