A merda em que se vive

O político estava sem gravata. Queria parecer informal, amigo da comunidade (palavra da moda, do politicamente correto). Mas a calça social, a cara camisa de botões e o bando de puxa-sacos em volta dele denunciavam o grau de autoridade. As câmeras de TV davam o ar solene no encontro com os moradores. O sorriso transformou-se na arma de aproximação. Sorriso para amenizar a desgraça alheia e esconder a própria negligência.

O prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, olhou para uma das moradoras do Jardim Pantanal e disse: - Olhe nos meus olhos. Você não confia em mim?

Diante das câmeras, jornalistas e assessores do prefeito, resta a ela – pressionada -dar uma resposta evasiva, do tipo “vamos esperar para ver”. O prefeito, cheio de pose, tenta esquecer 10 dias de bairro alagado, três ordens inócuas em 72 horas, e as imagens de milhares de adultos e crianças na rotina de andar e brincar nas águas repletas de esgoto.

Quatro dias depois da visita, outra notícia no bairro: a morte de um garoto de seis anos, que pode ter contraído leptospirose, doença transmitida por ratos. Outros dez moradores do Jardim Pantanal estão com a mesma suspeita.



Na semana retrasada, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva falou em tirar os brasileiros da merda. É interessante perceber como a palavra dita pelo presidente adquiriu tom profético, pelo menos ao manter o tema em pauta. Na verdade, ele foi apenas redundante diante do principal problema estrutural do país.

Lula falou merda há duas semanas durante o lançamento de um programa sobre saneamento básico no Nordeste. Provocou chilique na oposição, que procura qualquer coisa para se agarrar e desviar o debate sobre assunto mais sérios. Em tempos de corrupção por câmeras escondidas, cuecas e meias, quando se atira merda no ventilador, todas as facções acabam sujas de lama.

O frenesi político também auxiliou o governo com a estratégia de sempre. Lula improvisou no discurso, puxou o foco para si, abafou as trapalhadas da própria gestão e, com palavras populistas, elevou a própria popularidade. Falar merda reduziu, por exemplo, o foco sobre os verdes de boutique, aqueles membros do governo federal que posam de ambientalistas, mas – se pudessem – concretavam a Floresta Amazônica. Os cinzas – verdadeira cor desta gente – se sentiram aliviados e puderam se multiplicar diante da mídia na Dinamarca. Ninguém disposto a avançar; todos agarrados no impasse.

A merda na boca do presidente horrorizou a classe média, sempre a postos para exercitar o preconceito de classe e apontar o dedo para dizer como aquele sujeito não poderia ocupar o cargo. Lula não teria modos para isso. A classe média – coitada – engole e reproduz a hipocrisia de medir o outro pelo que diz e pelo status.

Os intelectuais ficaram excitados. Tinham mais combustível para teorizar sobre o presidente que não conseguem entender. Distantes do mundo lá fora, os intelectuais são por vezes incapazes de ler o cotidiano a partir daqueles para quem Lula discursa, pela TV, e se torna popular. Assim, tornou-se maior que o Partido dos Trabalhadores e é capaz de decidir uma eleição somente com frases de efeito. Isso quando não abafa as crises de corrupção, a instabilidade em diversos programas de infra-estrutura, a pífia política ambiental e as contradições de uma política externa, com faro midiático de resultados imediatos.

O que a classe média nem os intelectuais admitem é que alguém possa obter certos conhecimentos sem precisar dos bancos escolares. E chegar ao topo em qualquer atividade. É a velha ideia de que a única forma possível de adquirir saber está simbolizada em um diploma.

Não defendo o presidente nem o abandono da escola. Lula é um excelente ator, sobrevivente há mais de três décadas na política. Decepcionou quando ocupou o poder. Mas sabe escolher as palavras e quando utilizá-las, mesmo quando um palavrão gera a ilusão de uma fala improvisada e temerosa. É muito mais eficaz na oratória do que inúmeros doutores honoris causa, tão incompetentes quanto Lula nas ações.

Lula é fruto de seu tempo, assim como Gilberto Kassab. Tempo de muitas palavras ao vento e poucas ações. No fundo, uma postura tradicional do jogo político, com a diferença de que o mundo mídia leva as palavras a distâncias maiores e em períodos mais curtos. Palavras que ajudam a compor uma imagem, um personagem que pode nos enganar por anos.

Quando as palavras são inadequadas, o mundo mídia – quando bem explorado – nos assegura que as discussões fiquem nas próprias palavras em si e se encarrega de enterrá-las na mesma velocidade de divulgação. Manter-se distante dos problemas reais é a ordem. Criar cortinas de fumaça para escondê-los é a estratégia.

Para os moradores do Jardim Pantanal e centenas de bairros de periferia, chover é assistir à merda chegar ao batente da porta, mostrar-se pelo cheiro e, dependendo do lugar, pela água no joelho. A piscina de muitas crianças como nova e única área de lazer.

A moradora confiou em Kassab? Os filmes institucionais da Prefeitura dizem, na TV, que ele é transparente. Transparente, no caso, significa invisível, pois a moradora não terá a chance de vê-lo tão cedo, pelas ruas do bairro, olhar nos olhos dele e dizer: - Continuamos na merda!

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