"A Puta da Uniban"

O título acima foi escrito com a missão de nos provocar, caro leitor. E não é de minha autoria. Confesso que havia pensado em alguma bobagem intelectualizada, como “Vestido para os perversos”, mas o nome de um dos vídeos postados no You Tube resolveu a questão. Nada mais direto. Nada mais hipócrita. Nada mais perverso.

Da história da universitária Geysa Arruda, de 20 anos, não me interessa a cor do vestido, se era minissaia ou micro-vestido, os motivos que a levaram a usar a roupa ou onde ela pretendia ir depois da faculdade. O que me assusta são o ambiente acadêmico, o tal reduto do saber no imaginário popular, num plano secundário, mas principalmente o comportamento dos espectadores, como o próprio nome se impõe, de “nível superior”.

Os alunos, funcionários e professores exercitaram a perversidade que assina manifestações de ódio e intolerância em grupo. A moça escapava aos padrões morais. Ela era ou estava diferente daquilo que moralmente deveria ser, na mentalidade dos perversos. E permitia o distanciamento que conforta, mascara e torna a crueldade impessoal: muitos sabiam que a garota estudava lá, mas a maioria não convivia diretamente com ela.



A reação não é nova ou original: humilhação pública contra aquele que representa o que me escapa ao controle moral. Não há entendimento, somente repúdio. A estudante, na visão dos que a chamaram de puta, simbolizava a vulgaridade da mulher-objeto, trazia outro ambiente para o “purismo” do centro do saber. O rótulo de objeto a aproximava de outra marca, que machuca os olhos dos seres humanos ditos normais: a prostituta.

Como puta, não deveria estar ali. Inferior, ela deveria ser confinada aos guetos, aos lares de luz vermelha. Pela transgressão, o carimbo do estigma a ser carregado na face, se quiser permanecer ali, na universidade. Os cruéis reforçam a limpeza da própria consciência.

A violência dos colegas – e mesmo dos desconhecidos, o que não alivia a perversidade – me faz lembrar casos em que inferiorizar ou desumanizar o outro chega às vias de fato. Só que violência psicológica é, normalmente, mais eficiente e danosa do que ataques físicos. Deixa rastros difíceis de detectar. A dor é carregada por dentro, sem que os demais a percebam, a não ser vítima e carrasco.

Qual a diferença entre os estudantes que ameaçaram Geysa de estupro porque acharam que ela parecia uma puta dos também estudantes que espancaram uma empregada doméstica no ponto de ônibus? Eles haviam confundido a moça com uma prostituta e se sentiram no direito de puni-la. Ou queriam reforçar sua superioridade como espécie? Mendigos, prostitutas, índios são invisíveis, ocupam outro patamar de existência. Como ousam conviver, diriam os ícones da perversidade moral?



É neste momento que a lógica da agressão se inverte. A vítima merece ser punida porque transgrediu códigos de conduta. Se não, deve haver algo no passado que a condena à revelia. Quem criou as tais de normas de última hora? Quem as perpetuou? É o caso de um representante da universidade, que ironizou o fato de que as roupas da estudante justificavam a reação violenta em cadeia. A forma como uma pessoa se veste dá o direito às outras de a ameaçarem de agressão ou de submetê-la ao escárnio público? Que tal puxá-la pelos cabelos e arrastá-la para a caverna?

Em sociedades autoritárias, esse direito se estabelece por meio dos que tem poder ou entre os que o rodeiam, submissos por migalhas e isentos de responsabilidade como recompensa. O que se viu na Uniban foi um exemplo de selvageria, com um verniz de autoritarismo, onde se reproduziram valores sem a menor dimensão de suas conseqüências. O alvo, neste sentido, é nada. Ou quase nada, pois se arriscou a desafiar as regras, os padrões estabelecidos – o que nem é o caso. Todos estavam cobertos dos pés à cabeça?

Estigmatizar, carimbar um rótulo na universitária reforça outros dois aspectos. O primeiro é a voracidade do universo masculino. O machismo, inclusive, repetido por mulheres incapazes de ver nela uma semelhante. Falsamente protegidas pelo pensamento de que jamais serão foco da mesma violência. Julgam-se melhores? Ou padecem da tola ingenuidade?



Na perspectiva do macho não-evoluído, a garota com uma roupa provocante é sinônimo de alguém que está disposta a relações sexuais. Como macho, o sujeito se julga no direito de possuir aquilo que entende como sua propriedade, mesmo que provisória. A mulher é um objeto que, portanto, posso pegar quando desejar. Tomar à força, se não puder pagar pela mercadoria. Nada diferente das milhares de mulheres que apanham dos maridos, ou daquelas que morrem nas mãos – ou pelas armas – do que não suportam perder seus brinquedos.

A história de Geysa se completa com o triste papel de segmentos da mídia. Pode ser como instrumento tecnológico involuntário, como os vídeos do episódio no You Tube. Pode ser como caixa de ressonância do caso. A universitária freqüentou programas de TV e deu diversas entrevistas. O que se viu – salvo exceções – foi um debate raso sobre o tamanho de um vestido que uma mulher pode usar. Novamente, o autoritarismo travestido de opinião descompromissada. Quem tem o direito de ditar o tamanho da roupa de alguém? O que se ditará a seguir?

Perdeu-se – como era previsto – a oportunidade de se aprofundar o diálogo sobre comportamentos sociais e valores que permearam esta história. Ficamos apenas na superfície da questão. Como espetáculo de mídia, Geysa Arruda é perfeita. Servirá como vítima e será esquecida em 15 dias.

Os responsáveis se colocarão também como vítimas. Provavelmente, eles vão expelir – cínica ou cegamente – o olhar de quem não fez algo errado. Apenas puniram o diferente, o sujeito que não é imagem e semelhança. Pior: a pessoa que escancara aquilo que muitos desejariam ser ou que não tem coragem de fazer.

Comentários

Lívis disse…
A Queda da Uniban

http://mais.uol.com.br/view/9d1qqdho43o5/a-queda-da-uniban-04023860DC917366?types=A&

mto bom