O torcedor ideal



Raphael, estudante universitário de comunicação, entrou de camisa verde na sala de aula. Era o uniforme do Palmeiras. Um dos professores, palmeirense roxo, só notou a camisa ao final das atividades.

Ele se aproximou do aluno para comentar a vitória do clube no dia anterior. Ouviu como resposta:

- Sou são-paulino.

- O quê? Então, tire já este manto sagrado, brincou surpreso.

Raphael devolveu o sorriso como quem alcançou seu objetivo. E resolveu explicar a dúvida óbvia: por que um são-paulino vestia a camisa do Palmeiras? Promessa? Aposta perdida?

- Eu tenho camisas de vários clubes. E adoro vestir todas.

Raphael jura fidelidade ao time de coração, mas ama mais o futebol. E se diverte com as provocações entre os torcedores.

- Quando o Corinthians perde, saio na rua com a camisa do clube apenas para ver se as pessoas tiram sarro, comentam o jogo. Uma vez, apareci na TV porque jogava bola na praia com shorts do Corinthians, camisa do Santos e faixa na cabeça do São Paulo.

Sem saber, o estudante universitário seria a personificação daquelas campanhas, normalmente inócuas, organizadas pela paz nos estádios. Raphael ignora o teatro do fair play, promovido por entidades incapazes de cumprir a legislação, mas promíscuas nas relações com bárbaros que sobrevivem da intolerância.

O estudante entende, à maneira dele, que o futebol ultrapassa os limites do tribalismo selvagem. Ver um drible e gritar um gol são atos demasiado humanos para as facções que suam ódio e se armam para batalhas nos acessos às arenas esportivas (no sentido romano, faltando somente os leões).

Ele é o torcedor ideal, a lembrança poética de uma crônica rodriguiana. Vestir a camisa de outro time é o poeta que reage à tragédia. É a simplicidade única numa ação anônima. A resistência quase juvenil contra a mutação do esporte em cifrões. O torcedor que incorpora espiritualmente a idolatria por um jogo de broncos que – aos soluços de saudade - chamamos de arte.

Com cinismo, não vou publicar o sobrenome do torcedor para protegê-lo. A paixão pelo futebol pode cegar e transfigurar o mais pacato espectador de uma partida. Torcedor de futebol, quando ama, quer exclusividade. E não perdoa o que considera traição.
Raphael, obcecado pelo futebol como religião ecumênica, corre o risco de alcançar o que nem os juízes conseguem: a fúria de todas as torcidas, ao mesmo tempo.

Comentários

Mariana Felippe disse…
Muito bom! Com certeza, esse garoto é um peixe fora d'água em um mundo que se valoriza muito mais o que transparecemos do que o que somos. Assumir a paixão por futebol dessa forma é, no mínimo, um ato corajoso e autêntico.
airssea disse…
Ideal mesmo seria esse "ecumenismo" invadir de forma apaixonada e fanática os estádios de futebol.
Daniel Simonian disse…
Muita coincidência. Fizemos um trabalho de Psicologia onde o tema foi violência nos estádios. E comparei o ritual futebolístico com os romanos e leões também!
Nunca me liguei muito em futebol, mas adorava as tiradas do meu bisavô (santista roxo) quando, já velhinho, dizia que o Santos só não foi tri-mundial porque não deixaram. Haha.
Unknown disse…
"paz entre torcidas!
guerra entre classes!"
Unknown disse…
Você sabe que detesto futebol...
Mas esse texto tem uma sacada muito legal. Ele fala de tolerância. Aliás, artigo de luxo não só no futebol, mas nas relações humanas como um todo. Tolerância religiosa, étnica, social...
Além disso, gostei da forma como foi escrito. Prende o leitor até o fim, com direito a risadinha no desfecho.
Você se supera a cada coluna!!!