As histórias humanas



Esta semana, resolvi ler várias colunas atrasadas da jornalista Eliane Brum, que escreve na revista Época. Uma delas foi A vida muda num segundo, em que descreve a participação na cobertura do acidente com o vôo 447, da Air France, desaparecido no Oceano Atlântico.

O texto fala sobre a nossa relação com o imponderável, como o imprevisível modifica trajetórias humanas. No meio da cobertura, ela ouve de uma fonte que repórteres normalmente são seres insensíveis. E lembra que, quando trabalhava no Zero Hora, jornal de Porto Alegre, cobria tragédias porque “era competente para contar histórias humanas”.

Além da qualidade dos textos dela, normalmente suas colunas provocam em mim a reação que todos os autores esperam: reflexão. Parei para pensar sobre o nosso papel de jornalistas. Em primeiro lugar, sempre me pareceu esquisito esse termo para rotular um tipo de reportagem: “histórias humanas”. Sempre me soou redundante pela obviedade estampada em qualquer notícia. Não há matéria sem a presença do ser humano, com sua cultura, seus valores, suas contradições. Caso contrário, a atividade já estaria mecanizada, provavelmente.

È evidente também que, se um termo aparece e se propaga, algum problema temos. As redações ficaram “mecânicas” como os computadores que movem a produção. Os jornalistas, muitas vezes, acompanham as histórias com olho no relógio, para ter tempo de seguir a história seguinte. Os mesmos repórteres, em outros casos, cobrem fatos sem ter a menor ideia porque o fazem. Apenas temem que a concorrência registre os fatos. Se o público entenderá o que ocorreu ou se servirá como depositário de dúvidas do próprio jornalista, trata-se de acidentes de percurso, na visão dos óbvios.

Todas as histórias devem exigir sensibilidade de quem as acompanha. Mas estamos presos demais aos gabinetes, seguimos de maneira demasiada as “autoridades”. Seriam papagaios que se penduram no ombro para aparecer na foto? Ou gaviões destinados a cutucar o leão para arrancá-lo de sua inércia?
Somos penetras com roupas de convidados nas cortes. Pensamos que fazemos parte dela, mas nos esquecemos que somos aceitos pelo crachá que carregamos no peito. Muitos colegas entram em conflito quando perdem suas posições antes atreladas ao emprego que possuíam.

Devemos abandonar as “autoridades” e suas medidas pragmáticas e paliativas? Penso que não. Por que não focalizamos sempre os impactos das canetadas das lapelas dos que nos comandam, legítimos ou não? Seria ingênuo desconsiderar que as empresas jornalísticas hoje estão ligadas a universos empresariais onde sequer sabemos o início e o fim da lista de investimentos. É uma justificativa plausível? Talvez. Mas não explica a totalidade do problema. Ainda creio que é possível carregar as folhas nas costas e entrar despercebido no formigueiro. Muitas vezes, a rainha está demasiado preocupada com seus afazeres para observar ao movimento de certas formigas operárias.

Como justificar a insensibilidade dos jornalistas quando se trata de reportagens sobre pessoas comuns? Reconheço que este termo é discutível, pois pressupõe que famosos ou “autoridades” são especiais. Visibilidade não torna ninguém diferenciado. Mas a prática nos conduz a esse caminho. Muitos colegas entendem que os anônimos servem apenas para admirar aqueles que sorriem na mídia. Os anônimos deveriam apenas se espelhar nas referências do mundo audiovisual e sonhar em fazer parte daquele cenário de falso glamour, de valores artificiais e de obsessão por uma imagem construída.

O desprezo pelas histórias de pessoas anônimas também pode ser explicado pelo excesso de fontes oficiais no jornalismo atual. Engolimos, às vezes, explicações esdrúxulas de políticos – eleitos ou não – que minimizam um problema de infra-estrutura ou de irresponsabilidade de política pública. Cansei se assistir em telejornais locais e nacionais versões do Poder Público que nitidamente desmentem as imagens que uma reportagem acabou de exibir.



Nós, jornalistas, também escolhemos fontes pela imagem e semelhança. Ou por status! Um colega, professor de Jornalismo há mais de 30 anos, costuma dizer que a produção de notícias tende a ser preconceituosa. Como exemplo, compara os assassinatos de um médico e de pedreiro. Quem estaria na primeira página? O valor simbólico – a vida – não deveria ser o mesmo?

Ouço com freqüência uma série de razões para as pessoas não lerem mais os jornais. Os argumentos vão desde a questão mercadológica até a presença da tecnologia, passando por estética e qualidade de conteúdo. O que escuto pouco é a hipótese de que as pessoas lêem menos jornais porque não se vêem neles. Os assuntos pouco têm a ver ou interferem no cotidiano delas. Não seria uma teoria plausível? Se não ouvimos suas queixas, desejamos apenas confirmar teses que não os incluem, por que os leitores se interessariam pelo que temos a dizer?

Repórteres veteranos já me disseram inúmeras vezes, em tom de resignação ou irritados com o trabalho alheio: - Faltam histórias nos jornais!!! Pense, leitor, quando foi a última vez que uma reportagem te surpreendeu? Quando uma história fez com que você parasse para refletir sobre o conteúdo, sobre os envolvidos? Não falo da indignação momentânea e, ao mesmo tempo, passiva contra os ladrões engravatados ou o choque da violência gratuita – sem contexto – provocada pela TV e substituída na sequência pela mordida em mais um pedaço de pizza.

A questão é que o bom jornalismo costuma ser lembrado pelas histórias que segue e relata. Repórteres diferenciados ficam marcados pelo humanismo de seus relatos. E pela humanidade com que observam suas fontes, ouvem suas histórias e as absorvem. Acima de tudo, tais jornalistas se modificam a cada personagem. Como Eliane Brum e suas “histórias humanas”! Biografias que me lembram frase do jornalista Clovis Rossi, da Folha de São Paulo: o trabalho do jornalista é ouvir, ler, interpretar e contar. Por que é tão difícil fazer a lição de casa?

Comentários

Márcia Costa disse…
Marcão, me senti contemplada com este texto. Sem dúvida, falta mais História Nova no jornalismo - dar voz a muitos, ampliar as fontes, sair dos gabinetes... Falta perceber que um anônimo na multidão pode ter muito mais o que dizer do que uma autoridade sem competência e comprometimento (talvez pela simples possibilidade de nos identificarmos facilmente com a história de personagens tão iguais a nós). Parabéns e obrigada pelos textos inspiradores.
Paula Batista C. de Lira disse…
Talvez alguns colegas jornalistas tenham estudado os fatos e a notícia como uma ciência exata, repleta de fórmulas prontas a serem seguidas com raciocício lógico...Esquecendo-se que Jornalismo é humano e só permanece jornalista quem ainda é sensível, e que além de ser capaz de contar um boa história, encontra nos anônimos uma lição de vida a ser mostrada; pela garra, pela força ou talvez pela sobreviência.
Que os futuros profissionais possam não perder a sensibilidade ou simplesmente tornar cotidiano o que veem ou escutam...Pois durante nossa caminhada sempre encontraremos novas histórias de pessoas esperando que alguém as veja para serem contadas.