A cura medieval

O preconceito é inerente às relações humanas. Muitos conseguem se policiar, dependendo do grau de consciência que possuem do mundo que os cerca, da percepção de coletividade e de respeito ao outro. Outros se alimentam de ideias pré-concebidas para controlar, dominar os que se fragilizaram, sem explicar quais os interesses de seu próprio comportamento.

Quando o preconceito se une à falsa promessa de mudança (ou de cura) de um indivíduo, o cheiro de charlatanismo se desenha no ambiente. Como diz uma amiga, para se curar uma doença, é necessário que ela se caracterize como tal. Caso contrário, o paciente será lesado, talvez de forma permanente.

A censura pública a uma psicóloga carioca que promete curar o homossexualismo trouxe de volta o debate sobre o impacto da religião nas práticas científicas e terapêuticas. O caso mostra como o discurso ideológico – com respaldo de fanatismo religioso – se reforça em forma de preconceito. Transformado em prática, pode se manifestar e proliferar como indiferença por aqueles que entraram em dúvida sobre si.

Ciência e religião, numa falsa aparência, não se combinariam. Por trás de uma conversa mais calorosa, ambas se complementam. Dependendo da corrente dominante e do período histórico, as duas se afastam ou voltam a flertar. Na Idade Média, muitos queimaram na fogueira e sofreram nas masmorras por expor avanços científicos que colocavam em xeque dogmas e poder religiosos.

Na modernidade, a ciência, de forma geral, evitava o diálogo com a religião. Prevalecia a idéia de que os cientistas deveriam manter distância “segura” das instituições religiosas e tampouco buscar explicações metafísicas para fenômenos ainda incompreensíveis.

A terapia psicológica não costuma se entender com doutrina religiosa. Fora o fato de que jamais promete a cura. Em casos patológicos, um terapeuta solicita apoio psiquiátrico, que recorrerá a remédios e outros procedimentos médicos.
A terapia permite que o indivíduo avalie atitudes e relacionamentos, e reflita sobre quais caminhos poderá seguir a partir do momento atual. Jamais um terapeuta pode assegurar a cura para um comportamento não-classificado (no caso, homossexualismo) como patologia, inclusive pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

A psicóloga carioca falou, de rosto coberto, à revista Veja. Os argumentos dela são de um simplismo que beira teoria conspiratória de seriado de TV. Ela alega que sofreu censura pública porque o Conselho Federal de Psicologia está repleto de homossexuais. Aliás, compara, na entrevista, o movimento homossexual ao nazismo, pois ambos possuem intenções de “domínio econômico e político mundial”. As políticas públicas, segundo ela, pretendem eliminar pessoas e criar uma nova raça.

Muitos religiosos alegaram e ainda alegam direito e dever divinos para justificar suas maledicências e atrocidades. Basta entrar em qualquer templo de fundo de quintal ou em palácios com milhares de fiéis. O homem contemporâneo consegue adaptar, por razões múltiplas, e tirar proveito de discursos medievais, na perspectiva materialista, arcaica e nociva do termo.

A psicóloga se justifica com a religião. Vinculou-se a uma igreja protestante em 1983. Afirma que teve uma visão ao comprar um disco de Chico Buarque que, danificado em um dos lados, indicava a mensagem de Deus.

Ninguém é obrigado a simpatizar com o diferente. Ou tornar-se semelhante. A questão passa por senso coletivo, que implica em tolerância, respeito e decência nas relações humanas. HUMANAS! Qualquer coisa além abre a porta para perseguições. A história está recheada de exemplos. Basta abrir o jornal de hoje!

Recuso-me a publicar nome dela aqui. A psicóloga em questão não merece o espaço dedicado pela mídia. Ela merece o obscurantismo medieval de suas ideias, que devem ser discutidas pelas conseqüências de sua propagação.

No entanto, a psicóloga não merece ser perseguida. Tem o direito de se expressar, pelos canais que desejar. Menos interferir – pelo charlatanismo – na vida dos pacientes que acreditaram na palavra dela.

Mais do que medievais, as práticas dela são irresponsáveis diante dos danos provocados a essas pessoas e que, infelizmente, talvez não possam ser medidos em curto prazo. Por tudo, a psicóloga merece ser avaliada com respeito e justiça, por seus pares, pacientes e ex-pacientes.

O problema mais grave, porém, é que ela não está sozinha.

Observação: caso o leitor tenha curiosidade em conhecer as ideias da psicóloga-curandeira, o link da entrevista concedida à revista Veja:

http://veja.abril.uol.com.br/120809/homossexuais-podem-mudar-p-015.shtml

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