Caveiras, hiperativos e viciados em celular

Não foi por falta de tentativa. A proposta é feita de tempos em tempos na sala de aula, para estudantes na faixa dos 20 anos. Proponho a eles que façam o teste: uma semana sem TV, computador e celular. A rejeição é óbvia e veloz como as conexões do último modelo de laptop. Normalmente me olham como se a proposta fosse prisão perpétua ou câmara de torturas em Guantánamo. Ou enxergam um alienígena com giz nas mãos.

Em um país com mais de 150 milhões de aparelhos celulares em circulação, parece inevitável que alcancemos um grau de dependência dessa tecnologia. 85% dos aparelhos só recebem chamadas, como a surrada piada de pai-de-santo. Aliás, a maioria deles também só pode receber ligações dos vivos. Jamais chamá-los, papel voltado aos que não estão mais entre nós!

Existem os que demonizam e os que se ajoelham, seguido do sinal da cruz, perante uma loja de operadora no Shopping Center. É preferível, diante das alternativas, o purgatório, onde se pode refletir melhor sobre o assunto, sem a serenidade absoluta do paraíso ou o fogo que incinera a alma vendida por uns créditos a mais.

O celular, como símbolo de consumo, representa status, atende a desejos de várias ordens (inclusive sexual – conversa para outro dia), exclui ou inclui o sujeito em grupos, dependendo do modelo, tamanho, marca, operadora e recursos tecnológicos do aparelho.

Não culpe a tecnologia! O problema é o que fazemos com ela. Como se lida com as mudanças rápidas nos suportes tecnológicos e de que maneira interferem na vida das pessoas?

O celular, por exemplo, serve a comunidades com dificuldades de comunicação, que podem se organizar para promover certos “eventos sociais”. O PCC, com a mordomia telefônica, planejou e executou – das celas dos presídios – uma série de ataques no Estado de São Paulo. Foi como pedir pizza sem sair de casa. Durante este parágrafo, você – leitor – pode receber uma ligação da “empresa”, onde o “atendente” te informará que algum parente seu foi falsamente seqüestrado. Basta colocar crédito no aparelho indicado pelo funcionário que tudo se resolve, caso acreditou na conversa.

A telefonia celular também mobilizou iranianos, que enfrentaram a censura do governo e conseguiram mostrar a violência contra manifestantes de oposição nas ruas da capital Teerã. A morte de uma estudante foi registrada ao vivo, num misto de morbidez e protesto político.

São casos de manifestações coletivas, mas o celular é – essencialmente – retrato de como as relações se tornaram individualizadas. Ligo para você porque desejo apenas falar contigo! O telefone fixo não possui essa vantagem. Tua sogra pode atender!
Também permite que o sujeito saia do trabalho sem jamais deixá-lo. Como se esconder do chefe ou do subordinado inseguro? Culpando o trânsito, o túnel ou o elevador?

A atração pela morte conduz o ser humano à estupidez quando exibe o brinquedinho último tipo. No Rio de Janeiro, motoristas pararam seus carros na Linha Vermelha, há alguns anos, para fotografar – com seus telefones – duas caveiras que adormeciam na capota de um veículo queimado. Os corpos, carbonizados, estavam no carro. Uma foto como lembrança, o souvenir da cidade maravilhosa!

No dia-a-dia, ter um celular pode aflorar a preguiça, a impaciência e cobrança nos relacionamentos. Telefone desligado é certeza do interlocutor ofendido, mesmo que o chato que reclama não tenha nada para dizer.

- Só queria saber se você está bem!

O celular combate o ócio e tem fins terapêuticos para algumas pessoas. Ninguém consegue ficar sem fazer nada, ainda que sonhe com a vida mansa. Depois de alguns segundos, o “paciente” apanha o aparelho e tecla sem rumo, quando não se encaixa no exemplo anterior. Liga para alguém sem ter o que falar. Manda mensagens em busca de diálogo. Qualquer um!

Se o telefone combate a falta do que fazer, pode cuidar do indivíduo hiperativo. Se fulano não fica parado, sugira que mexa no celular. Pelo menos para de se mover enquanto espera aquele que manteve o brinquedo desligado e o irritou.

A dependência dos produtos é característica das sociedades obcecadas por consumo, que cobiça novos modelos de mercadorias por vaidade, ganância, reconhecimento social ou auto-afirmação. O que resolve problemas hoje poderá nos tornar dependentes amanhã.

Ficar sem a parafernália por uma semana não nos matará. Apenas nos adaptaremos! E trocaremos por outras injeções de ânimo do mercado. Se tivermos crédito!

Comentários

Anônimo disse…
Como toda e qualquer facilidade na nossa vida, é difícil pensar em viver sem celular ou internet. Depois que se conhece a suposta praticidade da tecnologia não dá pra fingir que não existe. Junta isso com o telefone fixo que é bem mais caro de manter do que um celular, telefones públicos que muitas vezes só enfeitam as ruas e a insegurança da vida de hj...
Cris disse…
Realmente não consigo me ver sem tais aparelhos, alias quando já fico sem internet é como se o mundo tivesse acabado...fico sem chão....sem celular tb....agora sugere voltarmos ao tempo das cavernas?
Cristiane, voltar ao tempo das cavernas? Depende do ponto de vista. (risos) Será que, às vezes, não utilizamos celulares e computadores de maneira a nos mantermos isolados do mundo em grutas? Você me fez pensar no mito da caverna, de Platão. Grande abraço!