O jaleco e o hamburger


Ariovaldo vestia todos os equipamentos de segurança para um trabalho de poucos riscos. Usava capacete branco, comum na construção civil, calça camuflada modelo militar, botas sete léguas, camisa escura e jaleco, além de luvas de borracha. Em silêncio, ele estava sozinho no combate. O exército de um homem só.

Embora veja como coletiva sua responsabilidade profissional, Ari prefere agir por si mesmo. Ele não consegue lutar em grupos. Prefere fazer o serviço isolado. Assim, o controla. Garante a eficiência, sem palpites de subordinados ou chefes! Não se importa com os comentários; afinal, comunica-se discretamente e transpira vergonha. Conversa? Apenas o necessário, pois o trabalho é infinitamente mais importante do que jogar palavras com qualquer um. Pode ser alguém que passa apressado. Pode ser alguém que trabalha por ali e o vê duas, três vezes por semana.

Depois de alguns segundos de reflexão, Ari se abaixou e recolheu um punhado de folhas. As luvas de borracha servem para isso: protegê-lo da água suja que se move lentamente na sarjeta. Abraçou, então, três caixas de papelão, que serviram para embalar cosméticos na farmácia em frente. Andou mais cinco metros e recolheu quatro caixotes de madeiras, daqueles que saíram do Ceagesp e encontraram destino final (até a chegada de Ari) no ponto de venda, um supermercado de bairro.

Aquele sujeito, de 30 anos, não é parte do mapa. Muda o relevo das imediações da Igreja da Pompéia, bairro nobre de Santos, mas não recebe o crédito. Para ele, crédito existe para quem tem os documentos do governo. Nem se parece com dinheiro. O trabalho dele é exatamente transformar em dinheiro mercadorias com ciclo encerrado na economia cotidiana, miúda até.

O jaleco atrai os olhares, mas afasta as aproximações curiosas. Preto, traz em verde fosforescente: agente ambiental. Esta é a missão que Ari impôs a si próprio. O dinheiro é conseqüência; o que o mantém animado é a mudança de cenário, a limpeza de um pedaço da praça, onde trabalhou por horas em mais um sábado de chuva.

Todo o material recolhido vai parar em uma carroça amarela, daquelas padronizadas e vistas – a desigualdade invisível – na rotina urbana. A carroça, organizada em compartimentos, é a casa e local de trabalho do agente ambiental. Ali, estão alimentos estocados, roupas de dormir, utensílios domésticos e os materiais que serão revendidos.

A chuva era contingência. Ari não diminuía o ritmo. O capacete, além da segurança, servia como improvisado guarda-chuva. Quando achou que o expediente terminara, com a carroça ajeitada, Ari esbarrou em um copo plástico à beira da calçada. E mais: outro copo boiava na água negra da sarjeta.

Ele balançou a cabeça negativamente e reclamou de que aquela tarefa parecia sem final. Foi à carroça, apanhou uma vassoura piaçava e varreu a água para o bueiro. Os copos foram parar na cestinha de lixo amarrada ao poste. Como alguém a três metros da cesta jogava dois copos no chão?

Ari não percebeu que era observado. Veio conversar com a objetividade dos diálogos de todo dia. E bombardeou com perguntas diretas:

- Eu peguei uma caixa de hambúrguer no lixo do supermercado. Venceu ontem. O que você acha? Tem problema?

Não tive tempo de responder. Ele se encarregou de completar o que poderia ser uma conversa:

- Olha, eu acho que não. Um dia só. Tenho a frigideira e o óleo. Você pode me ajudar a comprar o pão?

Com o dinheiro na mão, agradeceu e, quando ensaiava ir embora, notou que a praça precisava ser limpa novamente. O soldado verde não tinha munição para mudar a rotina da rua Euclides da Cunha. A produção de lixo era maior do que seu limite físico ou sua preocupação coletiva. Ao olhar para ele, fechado numa consciência ambiental particular, preferi não perguntar o porquê da vestimenta. Ele poderia se ofender diante de tamanha incompreensão.
Ilustração: DACOSTA

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