Entre cigarros, a alma filosófica

No começo da década passada, o adolescente de 17 anos chegava à universidade. Olhando para trás, ele não entende que fora uma transição difícil, mas jamais jogaria fora as lembranças de ansiedade e de alívio associadas ao momento de orgulho próprio. As portas estavam livres para algo novo, mesmo que soubesse muito pouco sobre o futuro ou sobre a profissão escolhida.

A idéia era se manter aberto às novas experiências. O professor não seria um adversário, mas alguém que estaria ali por méritos, disposto a provocar e a abrir cabeças. Só que existe um limite entre o trivial e o choque.

Foi a aula de sexta-feira. Aquela aula, a partir das nove horas da noite, em que a maioria dos estudantes pensa várias vezes antes de freqüentar. E, se a freqüentam, o fazem por medo de represálias como notas, reprovação por faltas e provocações em corredores. Há ainda os alunos que temem o estigma, preocupam-se demais com a opinião alheia e a imagem que pode ficar deles no ambiente da faculdade.

A matéria também não ajudava: Filosofia, com livre ingresso no rol das “malditas”, mas que também gera o sorriso de canto de boca do professor ao final do curso, quando muitos alunos se arrependem não ter dado atenção suficiente à disciplina. Seria manifestação de rancor ou de mesquinharia com os garotos que o desprezaram três, quatro anos antes?

Não era o caso do professor de Filosofia. Ele provocou comentários de pé de ouvido assim que entrou em sala. Vestia uma camisa de botões bastante usada, para não dizer surrada, calças de uma marca de surf de sucesso na época, daquelas com diversos bolsos (aliás, hoje em moda!), um tênis modelo iate (sem cadarços). E fumava! O cigarro seguinte era aceso no anterior. Foi a primeira paulada na turma do politicamente correto.

Até o aluno que se via como mente aberta ficou ressabiado. Mas deixou a curiosidade ditar a permanência em aula. Até onde vai o professor? Não era, na verdade, uma primeira impressão cristalizada, pois faltava maturidade suficiente para uma atitude contestadora. Só que algo naquele professor era instigante, mesmo que ainda fosse uma avaliação da casca. O bendito professor sequer havia aberto a boca.

As palavras não chocaram. Serviram como uma carta de alforria para aqueles que desejavam o início do final de semana às nove da noite de sexta-feira. O professor colocou as regras na mesa. Ou melhor, atirou as regras no ventilador. Notas não existiriam. Provas, uma peça de ficção. Aulas, sempre dialogadas como o velho grego Sócrates adorava praticar. Conteúdo, temas contemporâneos pelo olhar da Filosofia. E as faltas em aula? Resposta: sujeitos adultos têm livre escolha.

O primeiro impulso, seguido pela maioria dos alunos, foi se retirar. Oba, folgas às sextas! Outra parte manteve-se em sala naquela noite por civilidade, talvez. Foi a única ocasião. A minoria resolveu ficar. Não davam dois times de futebol de salão. Aquele professor seria mesmo diferente ou fazia apenas jogo-de-cena para se livrar dos estudantes, enrolá-los, e também curtir o final de semana mais cedo? Os alunos teriam que pagar para ver!

E viram um curso fantástico! Era meia dúzia de pessoas que não perdiam um encontro. As aulas pareciam uma autópsia do ser humano, pela perspectiva do pensamento. Liberdade, coragem, esperança, justiça, arte, temas que aguçavam àqueles adolescentes a olhar para o mundo ao redor e pensar sobre ele.

O professor não durou muito no cargo. Apenas o suficiente para deixar cicatrizes, marcas sem dores que talvez fossem sentidas em relevo anos depois. Não se sabe exatamente porque ele saiu. Talvez tenha preferido se dedicar à arte, paixão que também funcionava como elo entre prazer e pagamento de contas.

Mais de 15 anos depois, um dos seis alunos virou professor. Não se arrisca a romper tantas regras como o filósofo. Talvez não tenha a coragem necessária, mas o admira por considerar que o conhecimento pode se aproximar de um grau elevado de pureza. A pureza (ou ingenuidade?) que permite compreender o pensamento como ato pragmático – e de crença - em um cenário onde tudo deve ter serventia. Só que nada disso teria valor se o aluno-agora-professor não conseguisse notar que o impacto das palavras do filósofo-fumante numa sala de aula dispensa prazo de validade.

Comentários

Rose Marques disse…
Professor assim é raridade, é presente, e a "pureza do conhecimento", quase uma utopia acadêmica. É pena.
Mas sempre aparecem aqueles que fazem a diferença e ficam para sempre.
Lindo texto! E linda a história do Ari (comentei aqui por antecipação...)!
Abraço,
Rose
Anônimo disse…
Lúcida e precisa esta entrevista com a historiadora Vera Lúcia Nagib. Fez uma radiografia política, presente e futura daqui de Santos bem realista! Espero que os interessados personagens, ou seja, os políticos da cidade tenham apreciado esta bela entrevista!

Obrigado professor Marcos Vinicios por esta matéria!

Abraços!