A repórter desobediente (Contracapa # 3)




Os jornalistas discutem, de tempos em tempos, a ausência de histórias interessantes nos jornais. Faltam repórteres de qualidade? O espaço para o texto diminuiu? As pessoas lêem pouco? As hipóteses se repetem. A inércia segue viva nas matérias declaratórias, repletas de aspas e com ar de telegrama, e expõe também a ausência de criatividade, em um cenário no qual ninguém avança um milímetro sem olhar para as páginas do concorrente. Na verdade, a impressão é que muitos repórteres ficaram cegos. Não olham, não observam, não se arriscam; mal ouvem o que seus entrevistados dizem. Será que apenas os escutam quando teses são reforçadas?



A esperança talvez se concentre nas exceções, em maior número do que imaginamos. Eliane Brum, uma jornalista gaúcha hoje com pouco mais de 40 anos, jamais se contentou com o papel distorcido do jornalismo. Como contadora de histórias, ela não poderia somente informar (é possível se isentar a tal ponto?). Teria que interpretar, explicar fatos e cenários. Transformou inquietações em reportagens. Tornou histórias irrelevantes para muitos jornalistas um prato cheio de vida pulsante. Ela ainda o faz como repórter especial da revista Época, porém eternizou seu passado nas páginas do livro “A vida que ninguém vê” (Arquipélago Editorial).



Durante 11 meses, em 1999, Eliane Brum publicou todo sábado histórias de personagens gaúchos no jornal Zero Hora, de Porto Alegre. Trabalhou lá por 11 anos até ser contratada pela Época, em 2000. No espaço semanal, misto de reportagem, crônica e coluna, ela publicou rotinas que as pessoas próximas aos entrevistados não enxergavam. Ou até mesmo desvalorizavam, por vezes ignoravam.



O livro “A vida que ninguém vê” reúne 23 textos, além de prefácio de Marcelo Rech, editor do Zero Hora, e posfácio de Ricardo Kotscho, que – curiosamente – tentou dissecar aquela que havia se acostumado a desmontar seus entrevistados.



O livro é daqueles que nos obriga – eventualmente - a abandonar a leitura por uns tempos. Ou reler o texto. Não porque seja de má qualidade, mas pelo fato de que certas matérias nos chocam pela poesia, como pela miséria humana. “O encantador de cavalos”, por exemplo, conta a vida de um menino que adorava montar esses animais pelas periferias. Por ter montado em um cavalo alheio, teve a cabeça a prêmio. A fortuna da recompensa: R$ 50.



Em “Sinal fechado para Camila”, a tragédia da menina que pedia esmolas nos semáforos. Ou a vida do mendigo que nunca pediu um trocado. O senhor que é estrela de comerciais de TV décadas depois de vivenciar o holocausto na Segunda Guerra Mundial. O cotidiano de um menino impedido de correr pelo morro onde reside após um acidente. Ou o sujeito que chora compulsivamente em velórios sem conhecer os defuntos. Histórias de pessoas desconhecidas e atraentes pela especialidade de um cotidiano único.



E pensar que a garimpeira-repórter quase foi fazer outra coisa na vida. Até o último ano da faculdade, Eliane Brum não sabia se deveria mesmo seguir o jornalismo. Traçou talvez o caminho natural dos grandes criadores de textos. Passou a adolescência enfiada com a cara nos livros. Compulsiva, leu de tudo. Devorou coleções infanto-juvenis e obras adultas. Produziu aquele primeiro romance que julga digno de se manter enterrado em uma gaveta.





O texto de Eliane abriu as portas para ela. Fez com que pudesse conhecer pessoas escondidas na própria vida anônima. Arrebentou as trancas de uma vida considerada insignificante pela maioria dos sujeitos. A repórter não transformou as pessoas comuns em celebridades. Apenas escreveu sobre o que julgava ser um momento passível de visibilidade, um recorte especial de quem normalmente é ignorado pelo jornalismo, atropelado pela velocidade das informações, ferido pelas declarações vazias, maltratado pelas aparências das “fontes-autoridades”.

O trabalho final na faculdade de Jornalismo, “Esperando na fila da existência”, mostrava como um indivíduo – teoricamente cidadão, mas sem recursos para alcançar tal honraria – freqüentaria filas do nascimento à morte. A qualidade desta história a levou ao jornal Zero Hora, de Porto Alegre (RS). Na primeira matéria para a jovem repórter, a inauguração de uma loja de fast-food. Eliane Brum, desrespeitosa com a pauta quadrada, preferiu relatar o choque cultural entre os aposentados das imediações e a “modernidade”. Quem via começou a ser vista.

A reconstituição da Coluna Prestes, que permitiu uma releitura do suposto heroísmo daquela “cruzada”, despejou os holofotes e as críticas sobre ela. A gaúcha sobreviveu e foi premiada pelo trabalho. Ganhou também como prêmio a tarefa de produzir “A vida que ninguém vê”. Pena que por um período curto, mas suficiente para carimbar o passaporte para uma revista semanal de informação.

Ao terminar o livro, senti-me culpado: por que não o li antes? Foi uma daquelas obras que namorei na livraria, comprei e depositei na pilha de leituras prometidas. Às vezes, a espera e o pó sobre a capa serão eternos. Com o livro de Eliane Brum, foram 16 meses para que aquelas vidas fossem vistas pelo autor deste texto. Restou-me pedir desculpas ao jornalismo fora-de-série, devidamente perdoado com a propagação do “olhar insubordinado” da repórter gaúcha para estudantes universitários, como ela desejou no último texto de sua obra.

Comentários

Foi bom ter lido o capítulo que vc sugeriu,professor. Me senti normal e até bem, quando ela disse que sente medo em todas as reportagens, antes,durante e depois.
Agora, só estou tentando me acostumar com a certeza desse medo ser pra sempre...e escrevendo o texto sobre a moça da biblioteca :)

até amanhã!

Nathália Geraldo
Nathália,

Obrigado pelo comentário. É bom convivermos com este medo, que nos mantém levemente inseguros. Isso assegura uma preocupação maior com a reportagem e afasta a soberba e a vaidade que muitas contaminam os jornalistas. Abraço, Marcus