O mago e o ateu



Reportagem publicada no jornal Boqueirão (Santos/SP), n. 705, 20 a 26 de setembro de 2008 - página 8.

Nascido em Mariana (MG), o jornalista e escritor Fernando Morais, de 62 anos, faz jus à fama dos mineiros. Com 45 anos de jornalismo, ele diz exatamente o que as pessoas desejam ouvir, e no tom ideal, além de ser um contador de causos nato, não apenas nas páginas impressas, mas também em entrevistas e nas conversas com leitores. Ele participou no último final de semana, do Conversatório, evento mensal que aproxima autor e público no Sesc, em Santos.
Quando falou de Paulo Coelho, com quem conviveu por quatro anos para escrever as 632 páginas de “O Mago” (editora Planeta do Brasil), o ateu Fernando Morais remexeu várias vezes na questão da fé.

Antes do projeto biográfico, o jornalista havia lido dois livros de Coelho, por curiosidade. “Minha incredulidade me impedia de continuar lendo.” Para escrever sobre a vida dele, consumiu a obra toda. “Isso não abalou minha ausência de fé. Como disse o escritor italiano Umberto Eco, Paulo Coelho escreve para quem tem fé. Para o leitor, o ideal seria alguém que não acreditasse em nada. E acho que Deus é a grande invenção do homem para se defender do homem.”

Biógrafo e biografado não se conheciam pessoalmente. Eram contratados da mesma editora e, guardadas as proporções entre ambos, acostumados com os holofotes em torno dos autores best-sellers. A diferença era que Paulo Coelho havia batido a marca de 100 milhões de exemplares vendidos em 166 países e se tornado o único escritor vivo mais traduzido do que o inglês William Shakespeare. O autor carioca, que possui 1250 contratos literários em vigor, era lido por chefes de Estado e cortejado por celebridades e intelectuais do mundo inteiro.

O cenário era ideal para a editora, de origem espanhola e presente em 16 países latino-americanos. O projeto não deveria envolver um personagem ou um episódio exclusivamente brasileiro. A primeira sugestão foi a apresentadora Xuxa, proposta recusada por Morais. “De Olga à Xuxa, não é exatamente um progresso. Não seria bom para minha biografia.”, disse às gargalhadas, referindo a Olga Benário, mulher de Luiz Carlos Prestes e biografada pelo próprio escritor mineiro nos anos 80.

Partindo de informações iniciais, Fernando Morais – que recebeu US$ 250 mil de adiantamento - imaginou um pop star, cercado de “puxa-sacos”, nas palavras do biógrafo. Ele disse ter encontrado um homem simples, por vezes inseguro e frágil. Um sujeito que sempre se veste de preto em eventos sociais, reza três vezes ao dia e carrega uma malinha pequena pelos aeroportos. Mas também é o escritor que se hospeda em hotéis com diárias equivalentes a R$ 4 mil, voa de primeira classe e provoca filas de milhares de pessoas em lançamentos de livros pela Europa. O homem que fez questão de se tornar um imortal da Academia Brasileira de Letras, embora freqüente as reuniões somente uma vez por ano.

As contradições iniciais parecem rodapé de página quando se trata da vida de Paulo Coelho até os 50 anos. Obcecado pela idéia de ser reconhecido como escritor, ele teve para muitos uma trajetória mais interessante do que a própria obra. Adolescente deslocado e educado em colégio jesuíta, o mago de origem carioca flertou com o satanismo (o que incluiu vários pactos com o demônio, posteriormente anulados), passou por experiências sexuais diversas, casou-se quatro vezes, tentou suicídio, foi internado pelos pais três vezes em manicômios, onde tomou eletrochoques.

Além disso, Paulo foi seqüestrado duas vezes por militares durante a ditadura (mesmo sem postura ideológica definida), consumiu drogas por vários anos, enriqueceu com o rock nacional a partir da parceria com Raul Seixas, foi ator, dramaturgo, produtor teatral, editor de revista de ocultismo e repórter do jornal O Globo, veículo onde inventou reportagens inteiras. “A grande surpresa desta história é que Paulo esteja vivo. O natural seria que tivesse morrido.”

O baú - Os episódios resumidos nos dois parágrafos acima não foram escavados rapidamente por Fernando Morais. Cerca de 200 páginas haviam sido escritas após dois anos de trabalho, quando o jornalista resolveu reler alguns documentos, entre eles o testamento de Paulo Coelho. Ali, aparecia a indicação: um baú localizado em um dos apartamentos dele, no Rio de Janeiro, deveria ser incinerado com seu conteúdo logo após a morte.

Desconfiado, Fernando Morais telefonou para Paulo de madrugada, no fuso horário da França, onde ele reside em um antigo moinho, numa vila com 200 habitantes. O jornalista insistiu mesmo com a negativa de importância do conteúdo do baú, que teria tralhas de menino, como trens elétricos e revistas em quadrinhos. No final, Paulo fez uma aposta: se Morais descobrisse quem foi o militar que o torturou em Ponta Grossa (PR), receberia as chaves para abrir o baú.

O jornalista acionou uma série de contatos, inclusive no Ministério do Exército e, não só descobriu o major Índio do Brasil Lemes, como o entrevistou e o fotografou. Recebeu as chaves de um compartimento enorme, que parecia um armário. Dentro dele, 170 cadernos, os diários escritos entre os 12 e os 48 anos da vida de Paulo Coelho. “Joguei as 200 páginas escritas fora”, explicou.


Os diários traziam as angústias, as mentiras, as manipulações, as inseguranças, as relações amistosas e conflituosas com pais, amigos e amantes, além da recorrente obsessão em se transformar em um escritor renomado. Para o jornalista, a biografia seria “paupérrima” e retrataria um Paulo “bonitinho” se não houvesse descoberto o baú. “A coluna vertebral do livro O Mago e a dramaticidade da história vem dos diários. O baú foi uma espécie de psicanálise. Colocar a mão na água e remexer até o fundo.”
Fernando Morais, como descrente, não poderia se limitar a reproduzir uma série de cadernos. Era fundamental checar as informações. Entrevistou Paulo Coelho várias vezes. Numa delas, permaneceu na vila francesa de Saint Martin por seis semanas. Acompanhava o biografado até na caminhada diária de uma hora. “Ele andava com um gravador pendurado no pescoço.”
Outras 100 entrevistas foram feitas no Brasil, o que obrigou Morais a alugar um apartamento mobiliado e transformá-lo em residência por oito meses no Rio de Janeiro. Entre as confirmações, a tentativa de suicídio da ex-namorada Adalgisa, que Paulo sacrificou ao “Anjo da Morte”. Para combater a depressão após um aborto, Gisa foi estimulada a tomar calmantes e entrar no mar, sem saber nadar. Paulo acompanhou à distância a tentativa de suicídio e se surpreendeu quando a namorada retornou viva à praia.

Roubo – Fernando Morais confessa ter invadido a privacidade do biografado para obter determinadas informações. Em Madri, os dois estavam em um hotel gravando uma entrevista, no quarto de Paulo Coelho. Após cinco horas, Paulo pediu um intervalo e disse que tomaria banho. Depois de ouvir o barulho do chuveiro, o jornalista abriu a bolsa de seu entrevistado, pegou bulas de remédios, anotou os nomes dos medicamentos na palma da mão, desceu ao apartamento, passou os dados para o computador e retornou ao quarto de Paulo Coelho. Depois, Morais telefonou para um médico no Brasil com o objetivo de descobrir para que serviam os remédios. “Foi coisa de ladrão”, afirma, em tom de brincadeira.

Vinho de quermesse - Até hoje, Fernando Morais afirma que não entende como Paulo Coelho aceitou se expor a um estranho. Como também não compreende certas atitudes dele e evita julgá-las. Um exemplo foi uma festa de reveillon que Paulo deu para 60 pessoas em sua casa na França. No meio da comemoração, pediu a palavra e disse que a comida era por conta da casa, mas o custo do vinho deveria ser repartido entre todos. Preço: 16 euros por pessoa. “Parecia coisa de quermesse”, brinca o jornalista.
Escrever a biografia consumiu a saúde de Morais. Dez quilos mais gordo, o biógrafo ganhou uma hipertensão proporcional ao tamanho da obra que escreveu. A pressão alcançou picos de 18 por 15. Meses depois, ainda toma medicamentos e corre o risco de se tornar diabético. “Foi um livro que me deu muito prazer e muita dor. Lembro da escritora Rachel de Queiroz, que dizia não gostar de escrever. Eu gosto de ter escrito o livro.”

Como recompensa, O Mago já vendeu 100 mil exemplares no Brasil. A obra será traduzida em 47 países a partir de novembro. Mesmo diante dos números, Fernando Morais permanecia descrente com o sucesso da obra no exterior. Acalmou-se apenas quando ouviu a esposa de Paulo Coelho, a artista plástica Christina Oiticica. A opinião dela é ouvida pelo marido até nas questões menores do cotidiano. O jornalista-ateu também passou a escutá-la. “Nesta santa, eu acredito.”

Comentários

Rose Marques disse…
Professor,
Aquele dia, a aula de Jornalismo estava à frente.
Hoje, estou vendo que a aula estava ao lado.
Seus textos são uma verdadeira aprendizagem!
Abraço,
Rose
Rose,

Pôxa, muito obrigado pelas palavras. Nem sei exatamente como agradecer. Fico muito contente que tenha gostado da matéria. Sua postagem me permitiu conhecer três blogs. Uma viagem interessante!!

Abraço,

Marcus Vinicius