"Vou estar transferindo sua ligação"

Uma amiga chegou ao trabalho espumando, quase descontrolada. Perguntar tudo bem é, nestas horas, o estopim para uma resposta atravessada ou um desabafo. O aborrecimento foi causado por três horas de sucessivos telefonemas e várias transmissões de dados pessoais para uma voz metálica, que repetia um discurso de transferência para outra voz sem vida. Esta amiga queria apenas mudar o plano de pagamento do telefone dela. Não conseguiu! Nervosa, tentou cancelar a linha. Novo fracasso!

Insatisfeito com o serviço de telefonia celular ou indignado por ter recebido um cartão de crédito a revelia, qual o sujeito que nunca se irritou ao procurar os Serviços de Atendimento ao Consumidor (SACs)? O que deveria ser um mecanismo de aproximação com o cliente se transformou numa estratégia para evitar a exposição da empresa e dificultar o acesso do consumidor aos canais de comunicação do serviço contratado.

A decisão do Governo Federal de implantar regras mais rígidas para os calls centers (ou serviços de atendimento ao consumidor) expõe dois aspectos do mundo corporativo: a relação entre empresas e clientes e a relação entre empresas e funcionários. A partir de dezembro, os SACs tem que atender o cliente em até dois minutos, além de disponibilizarem uma tecla de cancelamento imediato do serviço.

Há duas semanas, um repórter do jornal Folha de S.Paulo experimentou cancelar os serviços de telefonia celular e TV a cabo. Em uma das empresas, esperou 57 minutos para que atingisse o resultado desejado.

As relações entre empresas e clientes evoluem lentamente no Brasil. O Código de Defesa do Consumidor surgiu apenas no início da década passada. Mesmo assim, o número de queixas é considerado excessivamente alto pelos próprios Procons e outras entidades semelhantes.

Os SACs entraram no pacote de composição da boa imagem das companhias perante o público. O fundamental é parecer eficiente e, em muitos casos, tal postura se mostra perceptível no momento da venda do produto. A impressão indica que o papel da empresa terminou assim que o negócio inicial foi fechado. Posteriormente, a responsabilidade crucial dela consistiria em impedir que o cliente debande para a concorrência, sem ter criado soluções para mantê-lo satisfeito, seja da perspectiva monetária, seja do ponto de vista de atendimento.

O outro aspecto envolve a desumanização da mão-de-obra que atua neste segmento. Os funcionários são treinados para abdicarem da criatividade, da pessoalidade no contato com o cliente, sintomas que auxiliam no entendimento da tese de que o objetivo é eliminar a comunicação com o público. Representa uma variável perversa e promíscua do uso da tecnologia, na qual o sujeito se torna extensão orgânica da própria máquina que opera. Ou seja: como se não houvesse diferença entre uma gravação e um indivíduo que fala como se fosse um robô.

Esta relação de trabalho, infelizmente, não é exclusividade dos serviços de atendimento do consumidor. Muitas redes de franquias, especialmente no ramo da alimentação, treinam funcionários de maneira semelhante. A proposta é quebrar metas sucessivamente e manter o mínimo diálogo com aquele que fez um pedido. Aliás, o pedido também é fruto de uma estrutura organizacional que restringe as escolhas do consumidor em prol da mecanização da compra e venda. Significa oferecer ao comprador valores simbólicos, como velocidade, sem que ele note que assinou um pacto no qual a empresa ganha em imagem e em faturamento. É a mesma velocidade prometida no contato inicial com os call centers.

A pergunta óbvia sobre as novas regras para os SACs – quem fiscaliza? – não tem resposta fácil. O consumidor que ficar com as orelhas vermelhas pode seguir dois caminhos: procurar o Procon ou efetuar uma denúncia ao Ministério Público. O decreto prevê multa de R$ 320 a R$ 4,8 milhões. De acordo com as regras, a ironia: quando você quiser cancelar um serviço, a empresa terá que CANCELÁ-LO. Ou será um trote?

Comentários

meu tio tbm passou por isso
um absurdo!

clarissa
http://derretendoossatelites.blogspot.com/
clarissa,
obrigado pelo comentário!!! o que deveria ser exceção, transformou-se em regra. abraço!!!