Sinuca entre livros (Contracapa # 2)

Reportagem publicada no jornal Boqueirão (Santos/SP), edição n.697 - 26 de julho a 1 de agosto de 2008 - página 7.


Depois de uma hora de conversa no segundo andar da livraria Realejo, o psicanalista Contardo Calligaris olhou para trás e disse:

- Adoro uma mesa de sinuca. Freqüento os bares do Largo da Batata, em São Paulo. Tanto que a sinuca estará presente no meu próximo romance.

O livreiro José Luiz Tahan, que acompanhava a entrevista, rebateu:

- Não seja por isso. Vamos jogar! Zuenir Ventura e Xico Sá já disputaram uma partidinha comigo.


O próximo romance de Calligaris terá como cenário principal a cidade de São Paulo, local que adotou para morar em definitivo há quatro anos. O psicanalista conheceu a maior cidade brasileira em 1986, quando veio a América do Sul para uma série de palestras. O roteiro incluía a Argentina, cuja capital – Buenos Aires – possui o maior número proporcional de terapeutas do continente.

Naquela época, ele morava nos Estados Unidos. Viveu em Boston e em Nova Iorque a partir dos anos 70, onde lecionou e atendeu a pacientes. Clinicar manteve acesa a relação com São Paulo. “Um grupo de paulistanos me propôs analisá-los. Vinha para o Brasil por 15 dias a cada dois meses. Durou 10 anos.”
Em 2004, tomou uma decisão que considera definitiva. “Preferi terminar a vida como um psicanalista paulistano em vez de ser um psicanalista nova-iorquino”, disse sorrindo diante de 200 pessoas que compareceram ao Sesc, em Santos, numa fria noite de sexta-feira. Uma conversa com duração de duas horas.
Calligaris explica que as pessoas o prenderam ao Brasil. Mais do que os pacientes, as amizades fizeram com que encerrasse o ciclo de mudanças de endereço, inclusive fechando o consultório nos Estados Unidos. “Amigos só encontrei aqui. Imagine ser seqüestrado e encontrado nu no outro lado do mundo, com direito a um telefonema. Amigo é aquele que vende tudo para te buscar.”
Os cabelos grisalhos e encaracolados representam a única indicação de que Calligaris é um homem de 60 anos. Em boa forma física, veste-se como um paulistano comum e poderia passar sem ser notado na multidão. Apenas o leve sotaque entrega que se trata de um estrangeiro.
Bom, estrangeiro até certo ponto. Calligaris é, usando o surrado clichê, um cidadão do mundo. Nascido na Itália, estudou em Genebra (Suíça) e, de formação freudiana, trabalhou em Paris (França) antes de seguir para os Estados Unidos. “Minha língua materna é o inglês, e não o italiano.” O psicanalista é um poliglota, tanto que publicou livros em francês, inglês e português. No total, uma dúzia de obras, entre trabalhos acadêmicos e crônicas e, agora, a ficção.
A barba do pai - Calligaris é uma figura pop no mundo literário. O romance de estréia, “O Conto do Amor” (Companhia das Letras), teve cinco edições em dois meses e meio. Ele explicou que jamais se sentiu tão exposto. “Somos feitos de ficções. As perguntas do homem moderno só têm respostas na ficção. O escritor tenta fazer alguma coisa com os fios soltos da sua vida.”
O livro conta a história de um terapeuta que redescobre a Itália para conhecer melhor o próprio pai que, no leito de morte, 12 anos antes, disse ter sido – em outra vida – assistente de um pintor renascentista. Na Itália, o terapeuta se permite – de forma intensa – amar uma mulher pela primeira vez.


O momento mais forte, para o autor, é a descrição do pedido do pai para que o filho faça a barba dele, antes de morrer. “É comovente”, responde após medir as palavras.
A obra gerou curiosidade não apenas pelo fato de Calligaris ser um colunista conhecido, mas também pelos limites da autobiografia. “O primeiro capítulo é autobiográfico da primeira a última linha. O resto, não.”
O psicanalista publica desde 1999, às quintas-feiras, uma coluna na Folha de S.Paulo. Recebe cerca de 200 e-mails por semana. O recorde aconteceu quando publicou o texto “Um Filme de Amor”, sobre o vídeo que mostrava a apresentadora Daniela Ciccarelli namorando na praia. Ele não viu nada de anormal e pergunta:
- Quem nunca namorou na praia? Na Internet, há vídeos mais ousados. O vídeo dela não serve nem como material pornográfico.
A coluna gerou dois mil e-mails, a maioria de mulheres que, inclusive, se solidarizaram com o psicanalista. Esta e outras cem colunas constam no livro “Quinta Coluna” (Publifolha), também lançado em Santos.

Volta à ficção - Escrever para a imprensa com regularidade semanal mudou os hábitos do psicanalista e a relação dele com a literatura. “A crônica, certamente, me ensinou a escrever. Escrever para não parecer inteligente, mas para quem tem interesse em ler. No fundo, foi um longo desvio para chegar à ficção.”

O desvio se caracterizou como um retorno de quase meio século. Aos nove anos, escreveu o primeiro conto. “Chamava-se O Homem do Pacífico e foi recusado por uma revista de literatura. Era a história de um marinheiro americano que sofre um naufrágio durante a Segunda Guerra e é resgatado por um navio alemão. Ele consegue enganar os militares por um tempo por falar o idioma deles. Depois, é reconhecido como estrangeiro.” O próprio psicanalista lê, atualmente, a obra como uma metáfora de si mesmo.
Apesar de ter conhecido o mundo, Contardo Calligaris – hoje – prefere voltar sempre ao Largo da Batata, com seus quatro bares; entre eles, o sugestivo Luzes de Miami, com suas prostitutas e demais personagens noturnos. Lá, o psicanalista – que conheceu o bar depois de rodar de carro por causa da insônia - nunca jogou sinuca. “Interesse por Antropologia? Eu gosto mesmo. Não uso estas desculpas.”
A observação teórica nos bares do Largo da Batata não serviu para a partida disputada na livraria, em Santos. Quem venceu foi o livreiro Tahan, e por 17 pontos de vantagem.

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