A lei seca e a cultura

Artigo publicado no jornal A Tribuna (Santos/SP), em 26 de julho de 2008, página A-15

Descontando o exagero da linguagem, o redator publicitário foi cirúrgico: todo brasileiro é apaixonado por carro. E muitos deles adoram uma cerveja ou um chopp. A chamada Lei Seca, ao tornar rigorosa a punição para aqueles que relacionam volante e álcool, cutucou com vara curta valores culturais enraizados na sociedade brasileira.

Como tais valores são concepções abstratas, a manifestação deles se dá por meio de situações concretas, ou seja, através do julgamento da legislação em si e, principalmente, de exemplos – positivos ou não – do próprio indivíduo e de pessoas de relacionamento próximo.

No lado perverso desta moeda, é a busca do sujeito em se eximir de responsabilidade perante os demais, o que implica falha de comportamento ético ao colocar o cidadão acima da relação social. A auto-defesa mantém intocado o próprio comportamento do indivíduo.

Não é incomum conhecermos motoristas que se consideram bons “pilotos” de automóvel. Também bebem com gosto e orgulho. Asseguram ter capacidade de se controlar perante o volante de um carro, inclusive quando mal conseguem permanecer em pé.

O rigor da lei mexe, inicialmente, com tal comportamento. Obriga o sujeito – por medo do calor da fiscalização ou da multa pesada no bolso – a alterar formas de se relacionar socialmente, abdicando de um dos dois ingredientes. Permanecerá sóbrio e motorizado ou virará um bêbado a pé?

Um dos paradoxos do comportamento cultural aguçado pela Lei Seca é a exigência de rigor, desde que seja para os outros. Afinal, muitos sujeitos julgam-se capazes de controlar as próprias funções motoras ao volante. São os mesmos indivíduos que comentam sobre a irresponsabilidade de motoristas que, alcoolizados, se envolvem acidentes de trânsito ou matam, independente da intenção. E, à frente da TV ou na mesa de bar, pedem punições mais severas para os infratores.

A Lei Seca também recebe, equivocadamente, o ônus de responsabilidade pela postura dos agentes públicos e pela podridão de um sistema jurídico lento e injusto. A legislação é apontada como causa da corrupção de policiais no momento de uma fiscalização. Molhar a mão do guarda ou ser extorquido por ele se constituem em atos anteriores à lei, entranhados nas relações entre Estado e cidadãos.

Ao mesmo tempo, a sensação de impunidade alimenta a idéia – debatida no cotidiano – de que a Lei Seca não deverá alcançar os mais ricos. Esta perspectiva também se fortaleceu antes da mudança. Sentir que poder representa sinônimo de impunidade nos acompanha desde o início da História. O sentimento é corriqueiro na atualidade não só pelos exemplos vistos nos três Poderes, como ainda na pequena corrupção cotidiana, que ocorre em filas de banco, repartições públicas, instituições de ensino e assim por diante.

Modificar comportamentos é, acima de tudo, interferir em valores culturais – em tese – cristalizados. Esta alteração é dolorosa ao balançar concepções vistas como dogmáticas. No entanto, a cultura é – por essência – mutante, adaptando-se ao tempo e espaço. O ideal é que a mutação cultural ocorresse por meio do diálogo, da negociação. Infelizmente, a lei – e talvez aí esteja caracterizado um problema – nasce de cima para baixo, mas o peso no bolso (ou as sanções) não depende dela, e sim dos sujeitos que a aplicam. Corrupção e impunidade, neste caso, sempre se relacionaram com álcool e volante.

Comentários

Pedro Martins disse…
Olá, Marcao.

muito interessante a entevista com o Contardo Caligaris. gostei das perguntas e da linguagem com a qual você transcorreu as respostas pois nos deu uma aparência de total descontraçao. de fato, se trata de uma figura maravihosa esse articulista.

muito provavelmente, nao saibas quem exatemente te escreve essas linhas. pois sou o Pedro, formando em jor pela Unisantos no ano passado.

abraço,
Pedro, obrigado pelo comentário!!! Claro que sei quem você é (risos) e agradeço pela leitura. Concordo com você. Calligaris é uma pessoa bastante interessante. Abraço!!!