O homem do livro e o presidente da Apple (Contracapa n.1)


Marcus Vinicius Batista

Quem observava da calçada expressou feições desconfiadas. Quem estava dentro do ônibus não entendia como aquele homem conseguia se concentrar, em pé ou sentado, na atividade. Ele parecia mais um daqueles sujeitos excêntricos com quem nos deparamos no cotidiano das médias e grandes cidades.

No ambiente de trabalho, os colegas o questionavam com frequência. Como ser adepto de uma ação solitária, independente, com a mínima interação social (ao menos de curto prazo) que poderia afastar os menos avisados? 

Ele, um publicitário, poderia ser visto como estranho, como um sujeito deslocado, pouco atraente até para relações afetivas. A resposta de que não há criatividade – alimento de seu ofício - sem informação pouco comovia. Nem o argumento do utilitarismo, tão comum hoje, convencia seus companheiros de empresa.
Diante da insistência de comportamento, os amigos o alertaram: ele poderia se transformar numa lenda urbana (ou em um dos personagens que vemos nas ruas, damos um apelido e comentamos baixinho) se continuasse com a mania de ir a todos lugares carregando ... um livro. Ainda mais com o hábito de ler durante as viagens de ônibus, sacolejando em pé, sendo empurrado (para não usar termos obscenos) por outros passageiros.

Ser adepto do livro sempre foi ação rara no Brasil. O período colonial transcorreu por três séculos sem a adoção de um sistema educacional e cultural consistente. As bibliotecas nasceram no Império, no século XIX. Permanecem – para muitos, inclusive educadores – como um estorvo no ambiente social. Não atraem votos nem a atenção de empresários. Mais de 90% das cidades brasileiras não têm bibliotecas.

Atualmente, o brasileiro lê, em média, 1,8 livros por ano, segundo a Câmara Brasileira do Livro. Um europeu consome de cinco a oito obras. Os nórdicos, especificamente, leem até 12 livros no mesmo período.

A boa notícia é que a América Latina registrou, em 2007, crescimento de vendas no varejo, ou seja, nas livrarias. Isso representa – em tese – menos dependência das aquisições governamentais de materiais didáticos. No Brasil, os livros escolares são 70% da produção nacional.

A National Endowment for the Arts (NEA), agência norte-americana que regula o desenvolvimento das artes no país, divulgou pesquisa que indica a queda no hábito de leitura nos Estados Unidos. Nos últimos 20 anos, o índice de adolescentes de 13 anos que nunca leram um livro subiu de 8% para 13%. Entre os que leem por prazer, houve queda de 31% para 22%. 
As famílias investem menos em compras de livros. As notas escolares, por exemplo, caem na proporção da pouca quantidade de obras em casa. Os leitores tendem a ter salários melhores, segundo a pesquisa.
Recentemente, o presidente da Apple, Steve Jobs, afirmou que não desenvolveria suportes tecnológicos para livros porque as pessoas não leem mais. Na concepção dele, o livro estaria morto e enterrado. A Amazon, pelo contrário, disponibilizou softwares para armazenagem de obras literárias, apostando na interação entre as mídias.

O cenário atual não serve como alimento para os amantes da catástrofe. O livro como suporte tecnológico permanecerá no cotidiano por muito tempo. Historicamente, mídias novas e tradicionais convivem e se completam, sem a extinção imediata da mais antiga. Aliás, o livro teve a morte anunciada várias vezes, desde a chegada do cinema, passando pelo rádio e pela televisão.

As causas das mudanças na relação com os livros são de difícil diagnóstico. O número de usuários de Internet, que se apropria da linguagem de texto e escrita, cresce em progressão aritmética. Nos Estados Unidos, por exemplo, os jovens se informam mais pela Internet do que pela TV. No Rio de Janeiro, o Ibope indicou que os canais abertos de TV perderam 20% da audiência nos últimos dois anos. A Internet consistiu em um dos fatores.

Por outro lado, os jornais registraram crescimento de vendas em todo o mundo no ano passado. O aumento foi da ordem de 2,6%. No Brasil, o quadro foi mais animador, com acréscimo de 11,8% nos últimos dois anos, o que representou a venda de oito milhões de exemplares por dia. O problema é que esta mídia vê o público envelhecer. O jornal é pouco atraente para os jovens, pois apresenta – entre outros obstáculos – temáticas e abordagens alheias ao universo deles.

As contradições entre as mídias impedem prognósticos. Entretanto, dada a conjuntura nacional, sujeitos como o publicitário-leitor podem se transformar em figuras raras na fauna cultural brasileira. Assumir a condição de um daqueles espécimes em extinção, protegidos por leis, alvos de cartazes de campanhas de proteção. Inevitavelmente, ele tornou-se um individuo visto como esquisito. Ganhou até um apelido: o homem do livro.

Consciente de que a solidão é momentânea, ele digere sem dor a incompreensão da maioria. Transita sem se importar com os olhares alheios, com a absoluta certeza de que sua ação pode aguçar a curiosidade sobre aquele bicho que carrega nas mãos e o mantém tão concentrado, mesmo em pé, numa viagem de ônibus logo cedo, pela manhã.

O que Steve Jobs diria para ele? Jobs conseguiria produzir um equipamento que identificasse os membros de uma tribo pelo objeto com letras que carregam nas mãos? Talvez não fosse utilitário instantâneo como o IPod, mas modifica a visão de mundo, difícil de prever no imediatismo, sensível em prazos mais longos. Como aconteceu com o homem do livro.

Comentários

Eduardo Henrique disse…
Tenho como hábito, desde de criança, a ter a companhia de livros. Tenho certeza que este prazer herdei de minha mãe, voraz leitora. Ler em ônibus, fila de banco, na espera da sessão de cinema, ou até mesmo caminhando nas ruas é algo que faço com prazer. Com isso, também é comum os olhares espantados das pessoas ao redor. No começo, achava uma situação embaraçosa. Com o passar do tempo, analiso ser algo comum. Também, vá lá. O Brasil nunca teve tradição nas letras. Haja visto a epopéia para os primeiros volumes impressos em terras tupiniquins. O heróico primeiro jornal “brasileiro”, impresso em terras da coroa inglesa. Sem contar com os episódios de queima de livros e proibição de imprensa em solo nacional. Porém, depois do aperfeiçoamento das transmissões via satélites de rádio e principalmente de TV, o que já era mínimo passou a ser pífio. Não condeno quem não tem como hábito o universo literário, visto que nos bancos escolares é que se cria o maior bloqueio para a descoberta dos livros.
Além da quantidade da leitura, preocupa-me a qualidade.



Uma matéria do ano passado que tento abordar um pouco sobre o tema:

http://www.culturaemercado.com.br/post/educacao-e-cultura-livros-para-sobremesa/