O açougue na TV

Será que a televisão cria valores? Ou apenas os potencializa? Os questionamentos são pragmáticos, partem da relação conflituosa entre a sociedade e quem veicula conteúdos de TV, mas geram a equivocada interpretação de que as emissoras podem se eximir de responsabilidade social.

A televisão brasileira, comercial desde a certidão de nascimento, é reprodutora da cultura para quem expõe suas idéias. E este comportamento natural serve para incriminá-la no momento em que exercita a hipocrisia. Mas jamais indicará que o conteúdo apenas responde aos anseios do público, velha muleta na qual se agarram apresentadores quando confrontados pelo péssimo material produzido ou por escorregões éticos.

O exercício de cinismo de programas de televisão pôde ser visto na semana passada, quando foi “comemorado” o Dia Internacional da Mulher. Sempre há espaço para as mensagens piegas e para os discursos moralistas, oportunistas e casuais.

Entretanto, a televisão – salvo honrosas exceções – reforça um dos valores mais nefastos da cultura brasileira. O machismo se reflete na forma como mulheres são transformadas e exploradas como mercadoria na programação.

Um exemplo são os programas de perguntas e respostas para celebridades de segundo time. Em um deles, apresentado por Gilberto Barros, os concorrentes respondiam a questões dentro de uma cabine de vidro, na qual o nível da água subia a partir de erros dos participantes. Os movimentos de câmera e os cortes na ilha de edição denotavam a relação de gênero. Enquanto o homem era focalizado em plano americano (pouco abaixo da linha da cintura), a mulher era gravada de baixo para cima, praticamente numa visão ginecológica.

Em programas de humor, o cinismo se manifesta na falsa exaltação da mulher como figura independente, a mesma que se transformará em alvo de brincadeiras de mau gosto e ofensas a partir da falta de inteligência e das características físicas. São sempre alvos de cobiça, realizam as fantasias sexuais masculinas e falam muito pouco, para não atrapalhar o andamento das ações que protagonizam em termos de imagem.

Até os programas femininos não conseguem acompanhar o discurso de igualdade e de emancipação feminina. Reproduzem o modelo Amélia, com conteúdos voltados para aquela dona-de-casa clássica, versão anos 50. Quando querem debater emancipação, entendem independência somente pelo ponto de vista do mercado de trabalho ou do comportamento sexual. No fundo, colaboram com a cristalização do machismo, perpetuando graus de submissão ao homem. A cama, mesa e o banho a serviço do marido trabalhador. Parece o velho filme publicitário de manteiga.

Por outro lado, é perceptível como isso se processa a partir de um elemento externo à televisão. Vivemos, atualmente, em uma sociedade obcecada pela imagem, seja no culto ao corpo, seja na exposição pública deste pelos filtros de mídia. Muitas mulheres realmente entendem que o caminho mais rápido para alcançar a fama – e o tal do sucesso – seria se sujeitar à transformação em produto, no qual o consumidor pode observá-la como numa prateleira de supermercado.

A televisão brasileira, infelizmente, passa distante do discurso idealizado para as mulheres. Avança lentamente, negociando pouco a pouco novos valores diante de um público igualmente avesso a choques morais. Isso assegura à mulher o papel de um pedaço de carne num cenário onde o consumidor escolhe pela marca, pela embalagem, tampouco pelo conteúdo.

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Observação: na semana retrasada, esta coluna abordou no artigo “Sexo, mentiras e videotape” a interferência da vida privada na carreira de políticos. No último dia 12, o governador de Nova Iorque, Eliot Spitzer, anunciou que renunciaria ao cargo após denúncias de ligações com redes de prostituição. A renúncia foi feita, como sempre, ao lado da esposa, de quem o governador espera o perdão. Curiosamente, Spitzer foi procurador-geral do Estado por oito anos e teve a gestão marcada pelo combate ao crime organizado, inclusive duas redes de prostituição, que resultou na prisão de 18 pessoas.

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