A TV Digital como ficção científica

A partir de 2 de dezembro, as transmissões de TV – pelo menos em São Paulo – deixam de ser analógicas e ganham caráter digital. As principais emissoras do país veiculam há dois meses, durante a programação, filmes de 30 segundos com objetivo de explicar, além de valorizar, é claro, a mudança tecnológica na principal mídia do planeta.
No entanto, as mudanças – a curto prazo – praticamente inexistem. A TV Digital ainda será um privilégio para poucos cidadãos (o mais apropriado seria consumidores) por uma série de fatores que envolvem as emissoras, os profissionais e, principalmente, os espectadores.
Em primeiro lugar, a chegada de uma nova tecnologia, em termos históricos, jamais exclui ou elimina as anteriores. É inerente uma fase de transição. O modelo tecnológico atual e os formatos de programação permanecerão por mais alguns anos. A convivência com o novo será pacífica e a despedida dos mais antigos, gradual e sem data fixa. Algumas mídias se aperfeiçoam e garantem sobrevida, como o livro e a revista. O primeiro sobrevive há mais de 650 anos, enquanto a segunda há mais de meio milênio, se descontarmos as variações de linguagem e de estética.
A relação com os espectadores também encara alterações em ritmo lento. Basta pensarmos que, no Brasil, apenas 30 milhões de pessoas – portanto, menos de 20% da população – têm acesso à Internet, mídia presente no país há 15 anos. A TV a cabo, dentro dos lares brasileiros no mesmo período, abrange a metade deste contingente, restrito às cidades grandes e médias.
A mudança tecnológica necessita da criação e do fomento de novos hábitos de consumo. É evidente que, a partir da estabilização do real, na metade dos anos 90, ficou mais fácil para os consumidores comprarem televisores e outros equipamentos eletroeletrônicos. Com a transmissão digital, a questão não é apenas o aparelho conversor. Oito em cada dez televisores brasileiros têm 20 polegadas ou menos, o que não garantiria – segundo os especialistas da área – um acréscimo na qualidade de áudio e de imagem.
O aparelho conversor, aliás, sairá mais caro do que o previsto. Um ano atrás, o Governo Federal falava em US$ 100 o preço do equipamento, o que daria hoje cerca de R$ 200. O mercado, que deverá regular os valores, cedeu às especulações nos meses seguintes. O conversor chegaria a custar R$ 800. Hoje, fala-se – inclusive o Ministério das Comunicações – em R$ 500, preço acima do que a maioria dos brasileiros pode pagar.
A presença da TV Digital afetará o modo de produção de conteúdos, o que inclui a linguagem. Como ficará a publicidade, cada vez mais ignorada nos intervalos comerciais e migrante para dentro dos programas? O jornalismo e o entretenimento? Ambos vão caminhar rumo à segmentação? Os conteúdos serão confeccionados por produtoras independentes? A Rede Globo, a maior do país, produz 95% da própria programação. Este índice já foi de 98%. Por outro lado, na TV a cabo, boa parte do que se assiste é feito por independentes ou adquirido de empresas estrangeiras. A emissora, há três meses, anunciou a extensão de contrato com a Playboy TV, ampliando de dois para sete os canais de programação erótica no sistema fechado.
A resposta é que ninguém sabe como ficará a programação. No máximo, perspectivas com base no passado ou exercícios baratos de futurologia. Até porque outro instrumento tecnológico integra o cenário: os celulares. Uma das vantagens do modelo japonês de transmissão é a portabilidade, ou seja, a capacidade de acompanhar a programação, com pouca perda de qualidade, em equipamentos móveis e de pequeno tamanho. As empresas de telefonia já perceberam este mercado e investem em equipamentos e gerenciamento de conteúdos.
O Brasil possui mais de cem milhões de assinantes de telefonia móvel, o maior índice da América Latina. Na outra face da moeda, é o país da mesma região com os serviços mais caros. É claro que a maioria dos aparelhos também precisa ser trocada, pois faz pouco além de emitir e receber chamadas. Aliás, a maioria dos assinantes utiliza serviços pré-pagos, o que afeta o consumo de conteúdos. Segundo o Ministério das Comunicações, o usuário nada pagará pelos programas assistidos em telefones móveis, porém as empresas de telefonia estudam mecanismos – desde publicidade até acesso a informações exclusivas – para laçar o consumidor pelas beiradas.
A imprevisibilidade da TV Digital ainda se sustenta na velocidade com que os equipamentos são modernizados. O sistema de consumo, quando unido à tecnologia, brinca com os preços, porém exige trocas sucessivas de aparelhos, visando atender aos novos modos de difundir informações, além de fomentar valores simbólicos como status e pertencimento social. Coitados daqueles que ainda pagam as 20 parcelas daquela TV LCD, diante da Oled TV, modelo produzido por uma marca japonesa, cuja tela tem três milímetros de espessura (um folha grossa de papel) com custo reduzido à metade das antecessoras.
O fato é que o prazo de dez anos para adequação à televisão digital dificilmente será cumprido. O país, de dimensões continentais, convive com um perfil de desigualdade social que gera disparidades tecnológicas. Trata-se de uma sociedade que ainda luta pela inclusão digital, consome cerca de 7,5 milhões de jornais por dia (só a maior publicação japonesa vende um terço disso) e dispõe de meia dúzia de canais abertos de televisão, com formatos, estética e linguagem parecidos.
Por enquanto, a TV Digital será privilégio para aqueles que possuem maior poder aquisitivo e que residem no Estado mais rico do país. É o contraste com o Brasil, no extremo norte, que vê apenas dois canais num aparelho em preto e branco e ouve rádio em espanhol, permeado por ritmos musicais colombianos. A difusão tecnológica, quando aliada ao consumismo, carrega em si – paradoxalmente – o poder de incluir e de excluir indivíduos da informação, do conhecimento e do entretenimento. Para os que podem pagar, o futuro é agora. Para a maioria, peça de ficção científica.

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