tag:blogger.com,1999:blog-44337126348248922132024-02-21T05:28:44.379-03:00Conversas e DistraçõesMarcus Vinicius Batistahttp://www.blogger.com/profile/04617832464338308222noreply@blogger.comBlogger1043125tag:blogger.com,1999:blog-4433712634824892213.post-2667585567379112252021-06-22T22:59:00.000-03:002021-06-22T22:59:15.577-03:00O argentino e a ambulância (Crônicas de uma epidemia # 55) <div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhqkZv7uxCbi6ftuQ-7nT2M2d1zhhwo7Iayklh7UvvV32tmvzgJvVFuJNz1PREkmerHcR7JN6VtZv4jPlCIPIcz-nb2mdk0ianwO2LQIPIu0sr91vHRiQBVtQabmJFTYkB_YF3MqwdT_1N-/s1920/umbrella-1587967_1920.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1280" data-original-width="1920" height="266" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhqkZv7uxCbi6ftuQ-7nT2M2d1zhhwo7Iayklh7UvvV32tmvzgJvVFuJNz1PREkmerHcR7JN6VtZv4jPlCIPIcz-nb2mdk0ianwO2LQIPIu0sr91vHRiQBVtQabmJFTYkB_YF3MqwdT_1N-/w400-h266/umbrella-1587967_1920.jpg" width="400" /></a></div><br /><span style="font-family: georgia;"><br /><b>Marcus Vinicius Batista </b><br /><br /> A ambulância berrava da outra quadra. Meu filho Vini estava nela. Sentia um certo temor. Se a polícia parasse o veículo? Eu esperava que a ambulância encostasse na porta do prédio, na falsa urgência daquele resgate. Jorge, o motorista, preferiu estacioná-la do outro lado da rua; sem pressa, apagou os faróis e abriu a porta. <br /><br /> Vini desceu pulando, com sorriso saudável de orelha a orelha. Atrás dele, Pedro – o melhor amigo e filho do Jorge -, corria em minha direção. Os dois tinham adoecido de felicidade depois de passar a tarde inteira brincando em casa. A ambulância era a novidade, uma volta no quarteirão de sirene ligada, surpresa que não percebi de primeira. Procurei o carro convencional que buscaria o Pedro naquele final de tarde de sábado. <br /><br /> Essa semana, eu visitei o Jorge para uma sessão de acupuntura e revi a ambulância. O veículo passou dois meses em tratamento especializado. Parte elétrica e mecânica refeitas de maneira cirúrgica. Pneus zero beijando o asfalto. Quando Jorge abriu a porta traseira, nasceu o consultório, o sonho dele em quatro rodas. Maca, cadeiras com cheiro de bebê, espaço para instrumentos, uma TV a distrair quem esperará por atendimento. <br /><br /> Jorge Pastor é um curandeiro dos melhores, que seria queimado com honras na fogueira da Inquisição, apesar de ter sobrenome de líder religioso. Curandeiro como profissão de fé, de quem nunca promete a cura, e sim prega o alívio do sofrimento. <br /><br />Ele carrega a benção de quem estuda, estuda, estuda o conhecimento da ancestralidade milenar. Jorge enxerga o ser humano de maneira integral. Um ser biopsicossocial e espiritual, como reza a medicina desconectada da indústria de pílulas com pretensão de milagrosas. A ambulância é sua arca, com a diferença de ser para todos. <br /><br />Jorge é especialista em medicina chinesa. Ele nasceu na Argentina e chegou ao Brasil no final dos anos 80. Hoje, é casado com Monica Yamazato, sobrenome tradicional japonês. O filho deles, eu chamo de Pedro Pedreira, pois esse menino de 9 anos é uma rocha que a vida insistiu, insistiu, mas não quebrou com o racismo tão arraigado por aqui. <br /><br />Se a família representa a diversidade, a ambulância transporta, na sua própria lataria, essa característica de um país formado por gente de tantos cantos. O veículo veio como doação anônima, de outro gringo que joga futebol num país europeu. Carinho de vizinho, solidariedade de imigrante. <br /><br />Jorge e Monica não mudaram de vida. Ajudar, acolher, generosidade e gentileza poderiam compor seus nomes sociais. Monica leva adiante o projeto Joaninhas, de apoio a famílias vulneráveis em termos socioeconômicos. De livros infantis a ovos para fortalecer a alimentação. Jorge, por sua vez, atendeu em diversos bairros periféricos de Cubatão. <br /><br />O consultório ambulante está em vias de transitar pelas ruas de Santos. A ambulância receberá adesivos nos próximos dias. A equipe de atendimento está em fase de formação. Uma possibilidade é iniciar o atendimento por albergues. <br /><br />A ambulância sabe qual é a missão dela. No primeiro dia, com aqueles dois meninos que vibravam com a sirene, ela me deu a convicção de que o caminho é prevenção e o cuidado. Ao contrário do que se defende em muitos gargalos do sistema, ambulâncias não simbolizam doenças. Elas podem atender emergências de amor, remediar melancolias, suturar dores da alma, pelas mãos de um argentino-chinês e sua esposa brasileira-japonesa, ou pela crença de qualquer pessoa que se aproxime e ouça o sorriso que brota da sirene.</span><div><span style="font-family: georgia;"><br /></span></div>Marcus Vinicius Batistahttp://www.blogger.com/profile/04617832464338308222noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4433712634824892213.post-60227282827973356502021-06-18T15:25:00.002-03:002021-06-18T15:25:46.105-03:00O amanhã é o hoje de sempre (Crônicas de uma epidemia # 54)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhosjc4WvVAfASWxr7ZcFmDHsxpHYhoXjvlXN0XqUTSfn3CG2GoAaPiG-JYJqA2mQzfBusGjEi2dUBKlikoArNq0kDaTim6EJXy0murinUaC_PQAt8HTcJSXOUQqWrTtk2v1n97EsBmajZ8/s1920/man-4716469_1920.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1189" data-original-width="1920" height="248" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhosjc4WvVAfASWxr7ZcFmDHsxpHYhoXjvlXN0XqUTSfn3CG2GoAaPiG-JYJqA2mQzfBusGjEi2dUBKlikoArNq0kDaTim6EJXy0murinUaC_PQAt8HTcJSXOUQqWrTtk2v1n97EsBmajZ8/w400-h248/man-4716469_1920.jpg" width="400" /></a></div><br /><span style="font-family: georgia;"><b>Marcus Vinicius Batista </b><br /><br /> O velho se sentia viciado. Não era dependente; no máximo, estava viciado. Ele acreditava que sairia da roda gigante quando desejasse, mas desconfiava de que a volta no brinquedo estivesse no automático. Como todos os viciados, jurava que dependia somente dele, que bastaria um aceno e o vício tomaria seu rumo, de rabo entre as pernas e vergonha na cara. <br /><br /> Nos momentos de tristeza, o velho derrubava a própria arrogância. A autoanálise era circunstancial, efêmera até, mas nessa hora ele entendia que o vício também o confortava. O vício o colocava na posição de vítima, a melhor de todas, a posição que o presenteava com o comodismo, com a paralisia, com a autopiedade, com a misericórdia alheia, com a transferência de responsabilidade. Viciado seria; réu, nunca. <br /><br /> O vício vinha todos os dias. Lidava com ele como se fosse uma refeição. Rápida ou não, com ou sem qualidade, pronta ou à la carte, ele se alimentava e se sentia obeso, jamais saciado. Antes, porém, havia uma entrada: a queixa. Reclamava das mesmas dificuldades, alguma sanadas, outras insistentes. Resmungar era mantra. Nada que provocasse irritação nele próprio ou em alguém. Uma dorzinha ali, um incômodo lá, só para demarcar o território da maledicência. <br /><br /> O velho conhecia o caminho do antídoto. Antídoto porque se sentia envenenado, tomando uma dosagem excessiva de frustração. Combatia a corrosão interna com paliativos ao longo do dia. Do sono aos filmes. Da leitura ao trabalho. Da conversa com amigos ao olhar de pessoas mais íntimas. Tudo aspirina. <br /><br /> O problema é que os paliativos, em tempos emocionais mais frios, se aproximavam do instantâneo. O vício o dominava mais vezes, dependendo do horário. Logo cedo e final de dia eram os picos da abstinência. Não vinha tremedeira, vinha uma certa amargura da idealização sem ato, da fantasia sem mudança de figurino. Vinha uma melancolia que servia de tranca para cada amarra que ele construiu ao longo de quase 30 anos. <br /><br /> O velho sempre foi viciado. Apenas mudou de entorpecente. Por mais de 20 anos, drogou-se em produtividade, trabalho, cobranças de subir mais rápido uma escada que nunca terminava. Sacrificou o corpo de todas as maneiras, injetando metas, objetivos, quaisquer nomes da moda que impregnam de desumanidade os biombos que aprisionam pessoas cada vez mais semelhantes em seus vácuos existenciais. <br /><br /> Quando pensa com alguma positividade, o velho se aconchega no programa de redução de danos. Vive melhor sim, mas ainda se pega na armadilha do desejo. O desejo é tão cruel quanto sedutor. Sobrevive no que não se tem, assassina a conquista assim que ela se materializa. No vício, o desejo é insaciável, voraz, guloso. Como não há conquista, o desejo se canibaliza para voltar à estaca zero. <br /><br /> O velho é viciado em mato. No meio do mato. Na vida no mato. Não há dia, próspero ou minguado, que o velho não percorra – mentalmente - os cômodos de sua cabana nas entrelinhas do nada. Cabana tão sólida quanto seus pensamentos, pois ele nunca flertou com casas de praia, de campo ou condomínio fechado. Sempre amou a vida provisória de um visitante, livre para ir embora quando lhe conviesse ou a chatice o sufocasse. <br /><br /> A cabana, na verdade, teria tamanho de mochila, capaz de carregar sonhos modestos, um modelo de sobrevivência com pouco. No programa de redução de danos, o velho já foi habilidoso em avançar. Cortou, doou, presenteou, reduziu, encolheu, bebeu da experiência do escambo e fez dietas das coisas. Menos, menos, menos. Ele está mais magro, longe de saudável. <br /><br /> O efeito colateral foi o vício num cenário que teima em se redesenhar a cada 24 horas. A mudança de traço não o surpreende, já que se constitui de imagens nunca gravadas, livres para releituras. O velho enxerga o mato todos os dias, sonha com ele, goza com a liberdade ainda que tardia, mesmo que ilusória. <br /><br /> Ele teme que, se chegar perto demais, a mágica se desfaça feito pó no ar. Assim, acredita que não se move rumo ao sonho. Tolo que não percebe a lentidão dos passos; os caminhos, tangenciados; o corpo dele se mexe. Ele quer ver, parece. Tomara. </span><div><span style="font-family: georgia;"><br /></span></div><div><span style="font-family: georgia;">Por enquanto, o movimento é o das cobertas, quentes e acolhedoras para todo o sonho que brota do (in)consciente. </span></div><div><span style="font-family: georgia;"><br /></span></div>Marcus Vinicius Batistahttp://www.blogger.com/profile/04617832464338308222noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4433712634824892213.post-18835272303929291952021-06-17T00:56:00.000-03:002021-06-17T00:56:20.121-03:00O peregrino (Entre insônias e cabelos brancos # 2)<br /><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiwlDra7_UO-g8s3V39RnwyN0gOYj2iT2U1gOXMrFEaigozCtcut7EsFDC-078NKk1hFOn984wGUaMbuukVrmAthD_4MhM-L53UFQh5j8p4ZnfInr4y-pzrAiud6X_yLIqzGslG5mKtunVq/s1920/adventure-1867868_1920.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em; text-align: center;"><img border="0" data-original-height="1280" data-original-width="1920" height="266" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiwlDra7_UO-g8s3V39RnwyN0gOYj2iT2U1gOXMrFEaigozCtcut7EsFDC-078NKk1hFOn984wGUaMbuukVrmAthD_4MhM-L53UFQh5j8p4ZnfInr4y-pzrAiud6X_yLIqzGslG5mKtunVq/w400-h266/adventure-1867868_1920.jpg" width="400" /></a><br /><br /><span style="font-family: georgia;"><i>**** <br /><br /><b><u>Entre insônias e cabelos brancos</u></b> é uma série de textos em parceria com o escritor Alessandro Padin. A proposta é simples: escrever um texto a partir do que o outro escreveu. Um diálogo literário. Se você quiser ler a crônica do Alessandro, o link está no final deste texto. <br /><br />**** </i><br /><br /><b>Marcus Vinicius Batista </b><br /><br /> Ele nunca viu o deserto como um obstáculo. Pelo contrário, ergueram amizade na secura mútua. Às vezes, ele se confundia na tempestade de areia. Às vezes, se arrastava sob sol forte. Era uma vida contínua no horizonte amarelado. No deserto, o peregrino sabe que nunca se chega, sempre se estende. <br /><br />A melancolia o empurrava há anos. A aridez temperava o costume de perambular. Quem perambula, acreditava, é quem esqueceu o rumo faz tempo. Não se incomodava com as incertezas da areia que lhe queimava os pés e apagava a forma anterior nas marcas da pegada seguinte. <br /><br />O que ele temia era a areia movediça, jamais presente no deserto, mas pulsante no sofrimento que o paralisou lá atrás, quando percorria planícies, mas ignorava o verde, hoje tão desejado nas mirações nebulosas do vapor que sobe o dia todo. <br /><br />O peregrino aprendeu que bastava caminhar. Se paralisasse, os sonhos murchariam. Ele ficaria desidratado tal qual o desejo de quem vê o deserto como fim, e não como meio. Ele estava lá desde qualquer hora. Era, de certa forma, o deserto, porém convicto de que sairia dele. Se não, sonhava com oásis que o protegeria de si mesmo. <br /><br />O peregrino se sentia diferente de uns dias para cá. Um de seu ombros ficou pesado, mas sem rigidez. Sentiu um toque e o aroma da maresia. A sensação salobra o fez enxergar um velho marinheiro. Rosto distorcido, testa enrugada, olhar de sabedoria. A fumaça do cachimbo o desnorteou, mesmo sem ver onde o tabaco se incinerava. O silêncio do marinheiro se misturava com o sopro do vento. Quem soprava? No deserto, haveria de ser a miragem da sede. <br /><br />Anteontem, o peregrino sentiu o outro ombro anestesiar. O cheiro era feminino. O toque, mais leve do que fada invisível dos contos que lia quando criança. O toque que balançava feito brisa, sem sacudir por fora, mas chacoalhando por dentro. Tudo remexido. Revirado. Não tinha a sensação de bagunça. Parecia tudo no lugar, como se observasse do planalto seu próprio vale – aquele onde afundara. <br /><br />O peregrino aprendeu, com a idade, que explicações naquele monte de areia eram para os tolos. Andar não garantia lugar algum; pior ainda se especulasse caminhos. Para sair do deserto ou pelo menos conviver melhor com ele, vital seria sentir. Absorver, abstrair, encorpar o que seria destinado a ele. Ganhou a expiação da dores de presente. No deserto, o mínimo que se recebe exige agradecimento, tudo se guarda, tudo se armazena para a noite, que se instala em baixa temperatura, sob o risco de o velho caminhante enrijecer suas juntas de novo. <br /><br />Perdido no labirinto de suas dores, ele não levantou a cabeça o suficiente para enxergar o traçado que se desenhava. Quase tropeçou quando as primeiras pedras emergiram. A areia perdia músculos. A grama a nocauteara e indicava que aquela ilha da fantasia o pertencia. O oásis de seus sonhos. Nada de pensamento mágico. Era a persistência de imaginar suas próprias alegorias, de crer que poderia sobreviver se sonhasse. <br /><br />O som do solo o avisou. Os pés não afundavam. Os pés ficaram firmes. O peregrino firmou o cajado, ergueu a cabeça e lacrimejou: a água estava ali, diante dele, cristalina para beber, para idolatrar, para orar em diversos obrigados. A água que jorrava daquelas mãos femininas. A água que embalara o marinheiro de viagens ilimitadas. Existiam ou não? Pergunta inútil para quem poderia descansar após tanto patinar na areia. <br /><br />O peregrino se ajoelhou, juntou as mãos e fez o movimento de apanhar um pouco d’água. Desistiu. Desistiu porque viu o próprio reflexo. Em seu rosto, o desenho do arco-íris, a diversidade de tons que o manteriam colorido por mais incontáveis passos no deserto. A areia não terminara. O sofrimento, sim. <br /><br />Naquele oásis, o peregrino entendeu que, se quisesse continuar vivo e errante, não deveria se preocupar com o final de uma trilha. O que mantinha o cajado em suas mãos era sua natureza, a do sonho, que tantos insistiram em abdicar.<br /><br /><b>Obs.: O texto do Alessandro neste<a href="https://medium.com/padin/onde-est%C3%A1-o-arco-%C3%ADris-65169a4e2903"> link</a>. </b></span><div><span style="font-family: georgia;"><br /></span></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div><br />Marcus Vinicius Batistahttp://www.blogger.com/profile/04617832464338308222noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4433712634824892213.post-65519689688523183282021-06-13T22:56:00.004-03:002021-06-13T22:56:42.900-03:00A enfermeira das almas (Crônicas de uma epidemia # 52)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhCz77ie0KeMNUAUkqpPnOXo9UcuGgNfmDZhGDxORuzBz9NaU3Y0qcSIpgyiteyDUj6lJsONTqTmmFoJjUEuLOb7deFtnGv0GPR4hhu4PfbApwS5Eo4R_w8lWxsMtLBEvMgwJpCpCX5AJp2/s730/fabi.jpeg" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="730" data-original-width="420" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhCz77ie0KeMNUAUkqpPnOXo9UcuGgNfmDZhGDxORuzBz9NaU3Y0qcSIpgyiteyDUj6lJsONTqTmmFoJjUEuLOb7deFtnGv0GPR4hhu4PfbApwS5Eo4R_w8lWxsMtLBEvMgwJpCpCX5AJp2/w230-h400/fabi.jpeg" width="230" /></a></div><br /><span style="font-family: georgia;"><b>Marcus Vinicius Batista </b><br /><br /> O velho entrou no hospital em silêncio. As dores estavam ali, dentro dele, sussurrando pelo centro das atenções. As dores que moravam no fundo daquele corpo que sangrava, daquela carcaça que desejava a cura. Ele não pretendia espernear, embora tivesse uma vontade de gritar no meio do salão de entrada como recém-nascido. Sentou-se mudo. Uma lágrima escorreu de cada lado do rosto, não vistas por ninguém, exceto pela enfermeira que o observava em meio ao caos de um espaço onde a guerra particular se instalaria por toda a madrugada. <br /><br /> Ela se aproximou. Ela era sobrevivente de campos de batalhas. Resistente às perdas, ao choro, cicatrizada em recomeços, estava acostumada a cair, a se resignar, a amputar pessoas que se foram, vítimas de crimes alheios. Luto em cima de luto. Guardava tudo dentro de si. No hospital, não vomitava, não tinha disenteria, não lacrimejava. Se havia algum canto para expurgar o lixo hospitalar interno, ninguém sabia o endereço. Nem ela, desconfiavam os mais próximos. <br /><br /> O velho não resistiu, não se debateu quando ela o tocou. Ela o ignorava enquanto se comunicava com as mãos. O velho demorou a perceber, uma, duas, três vezes, os arrepios que percorriam o corpo todo assim que as palmas das mãos encostavam em suas feridas, assim que o sopro rasgava seus ouvidos. O vento quente dava curto-circuito nas orelhas gélidas daquela madrugada de casacos inúteis, sobrepostos para acobertar suas doenças emocionais. <br /><br /> A enfermeira começou a limpar os ferimentos. Notou pelo toque que havia também uma fratura, consequência do problema central. O paciente escondia bem. Era sobrevivente como ela. Também curou gente até outro dia. Talvez ainda o fizesse, de modo eventual. Talvez tivesse se aposentado por invalidez. Ela não fez perguntas. Abriu o peito dele sem instrumentos, sem anestesia, sem autorização por escrito. Tinha que salvá-lo de si próprio. Uma chance naquela madrugada. <br /><br /> O velho confiava nela, naquele olhar que o atravessava, ciente de que era o algo a ser feito para que não afundasse. Não sentia dor alguma, somente uma tremedeira nas pernas, que ganharam vida própria, e um peso nos pés ressecados, nada sério. Pelo contrário, ela o levava para outro canto, para longe do hospital. <br /><br />Longe de ser uma alucinação, ele fechou os olhos e a deixou cumprir seu caminho. Não sabia mais onde estava, o hospital tinha outra cor, outro som, outra estrutura. Algo saía dele e provocava deleite, uma satisfação indescritível que até a ideia de deleite soava insuficiente. Desistiu de explicar. Optou por sentir o sopro, o toque, a falta de palavras ditas. <br /><br /> A enfermeira, contaria depois quando o choro dominaria o velho, cutucava seu coração. Ali estava a natureza dos sangramentos, da fratura. Ela aprendeu a seu modo – e isso significa que ainda não entendeu como aprendeu ou de onde tirou suas ações - que a medicina não nasceu há séculos para combater sintomas. Isso é charlatanismo ou ignorância. A cura se aloja na essência da dor, no ponto onde o próprio paciente ainda não alcançou, seja porque tem medo, seja porque se perdeu nas suas entrelinhas sem o guia adequado. <br /><br /> O velho se assustou ao descobrir que ali, naquele lugar, ninguém ficava internado. O pós-operatório seria em qualquer caminho, desde que escolhido pelo paciente. A cura não acontecia por milagre, já deveria ter assimilado. A cura balançava no horizonte, ao sabor das intempéries que o velho teria que digerir. Hoje, amanhã, se eles se reencontrassem. Não haveria cicatriz aparente, consulta de retorno, laudos médicos ou exames para marcar. O velho não recebera aviso algum. Apenas deduziu que poderia andar sozinho, deixar o hospital como todos os que identificou ao amanhecer. Todos como ele. <br /><br /> A enfermeira arrancou com a firmeza dos movimentos delicados e precisos algo de dentro do velho. Ervas daninhas, preferiu chamar. Sujeirinhas e mentirinhas, escolheu denominar no tom de voz singelo. Ela desconfia do que corroía aquele peito. Desconfia, mas não dirá. O velho sabe. Só ele sabe. Só ele sente. Só ele vai carregar ou se livrar do resto, feito as casquinhas que crianças adoram arrancar. Deixe-o pensar assim, vai funcionar. <br /><br /> O velho sonha em rever a enfermeira. Na cabeça dele, é um desejo real, movido a carinho, afeto, sentimentos que ainda não é capaz de classificar. Ele confessa para si que não se esforça para qualificar o que sente. Sente. <br /><br /> A enfermeira, a cada cura realizada, dança. Um bailar solitário, de movimentos de mãos de origem desconhecida, de pés de bailarina que ressuscitam de um presente que nunca deixou de existir. Os passos de dança continuam no saguão do hospital, na entrada da mata, onde raros pacientes a enxergam, onde raros pacientes vão implorar por atendimento, somente aqueles que ela escolher. Por semelhança. Por humanidade. Por amor gratuito. <br /><br /> O velho voltará à mata. O velho precisa agradecer à curandeira. Na verdade, à enfermeira, pois ela apenas deixou fluir o que brota de origem incerta. As andanças do velho deram o recado: atente aonde ela fica, onde tem uma nascente de rio. <br /><br />As referências do trajeto, o velho terá que escarafunchar dentro do peito e ouvir o sopro, na trilha da alma que ela rasgou, remediou, suturou...curou? Nem a enfermeira tem certeza...</span><div><span style="font-family: georgia;"><br /></span></div>Marcus Vinicius Batistahttp://www.blogger.com/profile/04617832464338308222noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4433712634824892213.post-67799728032980759912021-06-09T10:29:00.000-03:002021-06-09T10:29:37.083-03:00Os dois velhos e o menino (Crônicas de uma epidemia # 51) <div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj_jXsQ5qV9vymgQdFrBC7E6re2fuUSR4gEu7ziEdv1iJe7aiO-L5z75MdSiOyhMkY37zuoWKUnAu9ogvYtlxaaWigkPVlKGTKU9w8xoqZPGcmJUZy8z5GBZW_UZJai-O0vg_Ggh9QmXlfE/s1040/WhatsApp+Image+2021-06-09+at+10.18.33.jpeg" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1040" data-original-width="585" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj_jXsQ5qV9vymgQdFrBC7E6re2fuUSR4gEu7ziEdv1iJe7aiO-L5z75MdSiOyhMkY37zuoWKUnAu9ogvYtlxaaWigkPVlKGTKU9w8xoqZPGcmJUZy8z5GBZW_UZJai-O0vg_Ggh9QmXlfE/w225-h400/WhatsApp+Image+2021-06-09+at+10.18.33.jpeg" width="225" /></a></div><br /><span style="font-family: georgia;"><b>Marcus Vinicius Batista </b><br /><br /> O velho acordou chuvoso. Não importa o dia da semana. Sempre se levanta nebuloso, cinzento com o clima melancólico. Ele se arrasta para o banheiro, sem o peso da idade, com o peso das dores e das culpas de outras frentes frias. O velho acena para o menino, sua própria previsão de tempo bom, mas com cara de céu encoberto porque madrugou sem dormir o necessário. <br /><br /> Quando entra no banheiro, o velho tranca a porta para esconder suas nuvens carregadas, quase como a hiena do desenho animado que choraminga os azares da vida. Ele só não a encarnou porque sabe que – se houve azar – a falta de sorte foi responsabilidade dele mesmo. <br /><br />O velho se despe para se alagar no chuveiro. Ele desagua pelos olhos, anônimo e invisível, e esbraveja raios tão caóticos como a ausência de coerência que o eletrificou. Não há trovoadas, mente para si mesmo. Os trovões esperneiam e fazem birra dentro dele, que jura se manter silencioso como a bonança, em parte falsa, em parte genuína. <br /><br />Ele tem certeza de que, na sua pororoca particular, a tempestade é feito chuva de verão e que, portanto, vai passar. Seu dilúvio desaparece pelas rachaduras da represa emocional, quando ele respira fundo, conta até dez e pensa que o menino continua lá fora, ansioso por viver. <br /><br />O velho olha para os pés áridos, calejados pelas suas falhas, cicatrizados pelos amores recebidos, mais confortáveis pela esperança e pela fé que curam pouco a pouco as velhas (novas) chagas. <br /><br />O velho firma o passo, equilibra a coluna, contorna a areia movediça de minutos atrás e entra na cozinha. Ali, outro velho o espera. Bem mais velho em sabedoria e experiência, de pele ancestral e morada na mata, o conjunto que só se descobre possuir com a carga do tempo. E com incertezas. Um outro tempo, aliás, que faz o velho que chega parecer um garoto de fraldas molhadas, medroso, acuado e vulnerável. <br /><br />O velho mais velho espera sentado. Cansar as pernas é para quem as tem fortes. Ele somente se sustenta na paciência delas. Apoia-se no cajado para não desperdiçar energia com as batalhas alheias. Aprendeu que guerras acontecem por miudezas, se perpetuam por mesquinharias, se alimentam de insatisfações, que só se dissipam, no fundo, pela descoberta do que é essencial. <br /><br />O velho mais velho não tira seu chapéu de palha com a presença do amigo. Ambos se acostumaram. Trocam olhares, falam entre si sem mexer os lábios. O menino, lembra-se dele?, nunca nota o encontro diário. Outro dia, até perguntou o que o velho do chapéu fazia ali, na cozinha, mas se contentou com qualquer resposta. Ele é só um menino, ainda vai entender a vivacidade dos detalhes, ponderou o velho mais velho. <br /><br />O velho olha para sua versão mais idosa, olha para o menino e sabe o que fazer. Nada a dizer. Pouco a dividir. Tudo a compartilhar. A sutileza da diferença entre os três verbos (e entre eles três) o faz sorrir. Finalmente, está aprendendo. O dia sempre clareia. <br /><br />O velho esquenta a água, prepara o café. Na repetição mínima das manhãs, o velho rejuvenesce pelo amor. Ele serve primeiro o mais velho de todos. Xícara pequena, amor desproporcional, dito não pelas palavras que se perderiam, mas por estar por perto hoje, amanhã e no café seguinte. O menino, ah, o menino, esse toma o café desavergonhado, tal água, com a pressa de quem exala sede por viver. <br /><br />Agora, o velho os observa ensolarado. O eclipse já se foi. A luz vai dominar aquela cozinha pelo resto da manhã. É a melhor luz do dia. </span><div><span style="font-family: georgia;"><br /></span></div>Marcus Vinicius Batistahttp://www.blogger.com/profile/04617832464338308222noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4433712634824892213.post-28640778681727506792021-06-04T14:46:00.002-03:002021-06-04T14:46:45.700-03:00O camarada vai partir (Crônicas de uma epidemia #50)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh00IS4NTWuLhv5G8lbaG1v6FHZorQiWc58aXMdasGLN6fawTjmhpd7WDjh98-s8y0NKyxhocd5k52nYAFKiKlnC3Tmf3b3xrBsObuMbkxM7JuWeh7nV6TIpecWEmDQDhbcT1CQTwPXlYas/s1920/street-768589_1920.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="896" data-original-width="1920" height="298" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh00IS4NTWuLhv5G8lbaG1v6FHZorQiWc58aXMdasGLN6fawTjmhpd7WDjh98-s8y0NKyxhocd5k52nYAFKiKlnC3Tmf3b3xrBsObuMbkxM7JuWeh7nV6TIpecWEmDQDhbcT1CQTwPXlYas/w640-h298/street-768589_1920.jpg" width="640" /></a></div><br /><span style="font-family: georgia;"><br /><b>Marcus Vinicius Batista </b><br /><br /> Ele andava sem pressa, de modo que a caminhada pudesse permitir a extensão da nossa conversa. Costumava ouvir e raras vezes se manifestar, muito menos interromper ou julgar as ideias de quem lhe trazia problemas, episódios, verdades, mentiras ou histórias de versão única. O ritmo dos passos era a confissão de que ouvinte hoje era tagarela. <br /><br /> Naquela tarde, ele falava pelos cotovelos, joelhos, tornozelos e pés. Cada passada, um fato. Cada quadra, uma página. Cada bairro, um capítulo da mudança que se aproximava. Talvez a última, provavelmente a mais desejada. <br /><br /> O camarada tinha decidido partir. Não se despedia de mim – ainda nos encontraríamos. Não trazia planos em formato de especulações, e sim o relato do que já estava pronto no novo caminho. Tinha prazos a cumprir, vida material para se desgarrar, um novo endereço para procurar, primeiro o provisório, depois o definitivo, e saudades para construir aqui e exterminar por lá. <br /><br /> O camarada sempre foi paterno, não paternalista. Tem um senso de justiça de embasbacar os juristas mais puros, acolheu mais gente do que porta de igreja, impulsionou tantos peregrinos, enquadrou uns e outros que teimaram em ser prejudiciais. Sacrificou seus sonhos pessoais e as aspirações de trabalho para que a vida dos próximos pudesse se encaixar na sensatez da sobrevivência. <br /><br /> Desta vez, ele se deu o direito de pensar no próprio futuro. Um horizonte próximo, de poucos dias e milhares de quilômetros de distância. O futuro seria o retorno ao passado do recém-nascido. O horizonte também teria o cheiro da maresia, mas com sotaque diferente. A terra não seria mais a que adotara para constituir família e percorrer o mundo da indústria. A terra nova-antiga era de relógio mais lento, de um ponteiro só, do contato com a irmã de muitos anos de ausência e de pouco tempo projetado de coexistência. <br /><br /> O camarada me deu a honra de compartilhar sua fé. A fé nas pessoas. A crença de que a justiça alcança os que propagam o bem. Ele era a personificação da receita de um bom amigo. Estar ao lado sem determinar narrativas. Ouvir sem interferir nas incoerências dos ruídos alheios. Apoiar e chorar quando se grita que homem não chora. Que pai não lacrimeja. Que avô não se corrói em lágrimas de falta, de perda, de luto. <br /><br /> Escrevo assim que outro amigo partiu rumo ao norte, com a decisão e a necessidade de retornar em breve, sem dia certo, sem local para pousar. Deixará uma vida para erguer outra na minha vizinhança, fruto de horas de dedicação e sacrifício. Estarei aqui outra vez de prontidão para apoiá-lo e, se possível, abrir a picada de faca em punho ao lado dele. <br /><br />O camarada não. Ao mesmo tempo, escrevo com as vésperas da partida dele em meu colo. Ele partirá em menos de 15 dias também rumo ao norte, com a convicção de que lá encontrará sua última parada. Se é pela idade, se é pelo nirvana de retorno do filho pródigo, se é pela sapiência, nem o camarada faz ideia. Quem seria eu para colocar em dúvida a riqueza das origens, o deleite da terra prometida e cumprida? <br /><br />Prometo aproveitar os últimos dias com o camarada. Ouvir seus percalços mais antigos, aprender com suas aulas renovadas, abraçar com o amor de um filho, tomar um café improvisado de minutos atrás. Prometo enganar a saudade de quem vive com a sensação de que não haverá outro encontro, de que o ponto final ganha corpo no rodapé da página. <br /><br />Obrigado, camarada. Mais: um amigo. Meu amigo, agradeço por ter sido um pai. Que minha sensação seja um desvio nesta trilha... <br /><br /><b>Obs.: Texto publicado na AT Revista (A Tribuna), em 23 de maio de 2021. </b></span><div><span style="font-family: georgia;"><br /></span></div>Marcus Vinicius Batistahttp://www.blogger.com/profile/04617832464338308222noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4433712634824892213.post-74874463629995192112021-06-02T19:02:00.002-03:002021-06-02T19:02:53.791-03:00O vagabundo (Crônicas de uma epidemia #49) <p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjm0ga7ftXTg0xuHnCFygSCCQA3P1Elf-i4d-WX69QdkyIZdgiH7J0_3nDX9YrTX1dzVtqU0RSFTJfFDnm942J63Z4A1iCDvGbyxOlUEn29_WTB4mxeHCCLBi69UFp2l0voF4WUy-GBg1g_/s1280/hobo-315961_1280.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1079" data-original-width="1280" height="338" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjm0ga7ftXTg0xuHnCFygSCCQA3P1Elf-i4d-WX69QdkyIZdgiH7J0_3nDX9YrTX1dzVtqU0RSFTJfFDnm942J63Z4A1iCDvGbyxOlUEn29_WTB4mxeHCCLBi69UFp2l0voF4WUy-GBg1g_/w400-h338/hobo-315961_1280.jpg" width="400" /></a></div><br /> <b style="font-family: georgia;">Marcus Vinicius Batista</b><p></p><span style="font-family: georgia;"><br />Conheci um vagabundo essa semana. Vagabundo profissional, dos bons mesmo, preparado, treinado e estudado nas artes da vadiagem. Tem até título de pós-graduação em fuleragem. Um mestre diplomado na ciência do fazer nada. <br /><br /> Este vagabundo é versado em tecnologia. Ou melhor, engana no nível do necessário. Ele não fica perambulando por aí sem motivo. Pode ser vadio, mas não é besta. Pra que sair na rua e correr risco de ficar doente? Para que sair na rua sem dinheiro na carteira? Capaz de fazer dívida e aí virar gente séria. Ele não rouba nem faz. <br /><br /> O vagabundo que conheci fica na Internet. São horas por dia conectado. Horas papeando, navegando sem bússola, jogando conversa fora sobre assuntos que gente de tradição nunca se interessaria. Esse papo furado só terá efeito nos outros daqui anos, se é que os outros vão adoecer com a influência dele. Ou pensar sobre ele. <br /><br /> Ele me confessou que sabe a verdade: muitos fingem escutá-lo. Que fingem dar valor, pois pega mal falar mal de vagabundos. Vagabundos são assim. Crentes no ócio, fãs da inércia. São fracassados, costumam pregar alguns, que rezam para que eles sejam pregados em cruzes. Ironicamente, tem gente que finge não ter dito que os vadios eram perdedores depois de se tornar também um vagabundo. É aquela turma que precisa parecer trabalhadora para vender a imagem de férias eternas. <br /><br /> O vagabundo está sempre cansado. Ele reclama porque é preguiçoso. Ele se dedica a coçar o saco e passar pomada, brincou outro vagabundo mais tarimbado na enrolação diária. A vadiagem, de fato, esgota em certo momento. Nascemos para sermos produtivos. Trabalhar até morrer ou de morrer de trabalhar?, essa é a pergunta que se deve fazer sempre, antes de continuar na labuta. O vagabundo é um rebelde sem causa, que não contribui em nada para o crescimento da sociedade, repetem como orações os oradores de promessas bem vagabundas, mas caras feito lugarzinho no céu. <br /><br /> O vadio que conheci sabe enganar mais do que os gatos daqui de casa. Ele, quando não papeia, lê. Você acredita? Lê!!! O maldito lê livros, reportagens, textos de estudantes, crônicas, poesias. Ele é esperto, sabe? Quando é cobrado pela ausência de resultados, de não cumprir metas, de não ter objetivos concretos na vida ou de não querer – basta querer no mundo de hoje -, o sujeitinho muda de tipo de texto. Ele alega que está renovando o repertório, atendendo pessoas, enriquecendo o vocabulário, organizando os pensamentos, tudo no gerúndio para cometer o estelionato da continuidade intelectual e do tempo verbal, mas sem parecer telemarketing. <br /><br /> A petulância do vagabundo é tamanha que ele ainda se dá o direito de pensar. Você leu...”organizando os pensamentos”. Quer desculpa mais esfarrapada para não fazer coisa alguma? O vagabundo é presunçoso em tempos de tudo ou nada. Ele duvida, questiona, pondera, avalia, convence, tudo o que não deveria acontecer. Se o vagabundo não executa tarefas, não bastaria ser passivo também? Ainda atrapalha os outros, que desejam o mais do mesmo, o conforto da inércia. <br /><br /> O vagabundo de carteirinha e carteira assinada entrou em férias. É...para as dores dos jornalistas que o chamam de vagabundo enquanto só pensam na polêmica oca, irresponsável para ganhar uma audiência rasteira. E não produzem nada enquanto clamam pela produção escrava dos tão paupérrimos quanto eles. Os vagabundos? <br /><br /> O vagabundo-professor saiu discretamente. Como devem ser os professores...e os vagabundos.</span><div><span style="font-family: georgia;"><br /></span></div>Marcus Vinicius Batistahttp://www.blogger.com/profile/04617832464338308222noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4433712634824892213.post-27057274786567033522021-05-25T00:03:00.003-03:002021-05-25T00:03:27.830-03:00É anjo que se chama? (Crônicas de uma epidemia # 48) <p> </p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh316LzASY12wg3X75rNyauFDDzAneRQEdN55Z5jGVh9z3IyIbxEu8XuOvGlzA2OfRgSPiiExxPYKLo3vWDlbx-q42Em04AJD_H1U5_IBcmeWvYGEqkKGboBgrvU34t7Yr0KazfqvLQpME9/s1920/sunset-4373510_1920.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1314" data-original-width="1920" height="274" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh316LzASY12wg3X75rNyauFDDzAneRQEdN55Z5jGVh9z3IyIbxEu8XuOvGlzA2OfRgSPiiExxPYKLo3vWDlbx-q42Em04AJD_H1U5_IBcmeWvYGEqkKGboBgrvU34t7Yr0KazfqvLQpME9/w400-h274/sunset-4373510_1920.jpg" width="400" /></a></div><br /><p></p><span style="font-family: georgia;"><b>Para F. <br /><br />Marcus Vinicius Batista </b><br /><br /> Não acredito em anjos. Desconfio de gente com sorriso angelical. Tomo distância segura de quem infantiliza a voz, fala em tom monocórdio e deseja ser mais Poliana do que a própria personagem. As asas de papelaria e todo o resto beiram a falsidade, ultrapassam os limites da chatice enquanto mascaram o controle, a patrulha e até uma maldade dos infernos. <br /><br /> Prefiro os anjos da guarda. Esses são mais humanos. Falhos, ranhetas, professorais às vezes, acendem vela para maus defuntos (que acenderam primeiro, claro, numa barganha sempre desigual) e trocam de protegidos muitas vezes na vida. Tudo tem limite, até a proteção. Mas protegem com esforço máximo, independentemente do passado, do presente e do desejo de futuro do protegido. <br /><br /> Fiquei muitos anos sem encontrar o meu. Para alguns, é um preto velho. Para outros, um caboclo. Confio nos dois, em outros planos, porque nesta planície é ela, aliás. Uma mulher mais experiente do que eu, sete anos, número cabalístico para quem adora misturar numerologia com anjos. Ela não. Adora dizer que se encontra em razoável estado de conservação. Sempre que pode, fala por e pela poesia. <br /><br /> Minha lembrança mais antiga é vê-la em cima de patins, aqueles old school, com quatro rodas e freio na frente. 16 anos de idade, no auge da imortalidade. Eu a admirava feito criança que era, mas consciente que nunca teria tal habilidade de rodar daquele jeito sobre a Terra. <br /><br />Depois, quando ela voltou do outro lado do oceano, onde protegeu gente de vários quilates, ela me trouxe um símbolo de conto de fadas. Apaixonado por futebol, tenho até hoje a marca italiana de um dos sete anões, o Dunga. Vai falar mal dele que ela incorpora outro anão, o Zangado! <br /><br /> Reencontrei meu anjo da guarda há pouco mais de três anos. O tempo é referência apenas para mim, que se degrada com prazer das novidades em tese maduras, sem arroubos de juventude. Ela, a guardiã, congelou no formol, lindíssima e elegante. Uma mulher classuda, como diria minha mãe, daquelas que um vestido basta para derrubar uma festa. <br /><br />Nosso reencontro com ela, ao som de quem um dia chamou de música do diabo, se deu numa pista de dança, onde ela se acabava com um vestido que resistia aos movimentos de desafio ao espaço-tempo. Não confunda pureza com singeleza. Não misture ser de outra dimensão com isenção de pecados. O anjo da guarda só pode ser visto, sentido, percebido por nós se o entendermos como demasiado humano. Mais até do que a gente. <br /><br /> Dizem que os anjos não demonstram sentimentos e emoções. O anjo da guarda que conheço sente pelos poros. A gargalhada é única de tão sonora. A amorosidade e a indignação com o que o homem faz por Deus, com Deus e apesar de Deus a tira deste mundo. Demasiado humana, para ser redundante. Descreve com carinho todos os amores, familiares ou não. Com respeito. Até para enumerar defeitos (quase) imperdoáveis, há delicadeza na voz e nas palavras. <br /><br /> Esta mulher me protege, mas não estabelece hierarquia. Conversamos no mesmo nível. Sentados no sofá e cercados por dois cachorros, que protegem os portões assim, assim. E com nome de gente santa, como aquele que precisa ver para crer. Mais evoluída, ela mais escuta do que fala. Preciso me policiar para me calar. Ali, não prevalece desigualdade, o que seria desleal numa confusão com proteger ou acolher. <br /><br /> Já chorei de forma desavergonhada diante dela. O ambiente era confortável, eclético nos objetos que simbolizam as paixões multiculturais. Mesmo sem asas, ela voa por todos os cantos. De New Orleans, me trouxe as caveiras que tanto me levam à essência, ao primitivo. Herdou ser nômade dos pais, aposto, o tal fogo no rabo de viajar, a curiosidade de experimentar, a ânsia de conhecer. E herdou também o retorno do filho pródigo à terra de suas origens. <br /><br /> Este anjo da guarda, por motivos que desconheço ou por caminhos que ainda não entendi por completo (acredito que nem ela), esteve do meu lado em dois momentos essenciais. Poderia dizer que foi a mão de Deus, mas aí quebraria o protocolo angelical. Foram instantes de encruzilhada na vida, a minha, que só cabe a nós dois assimilar, cabe a mim agradecer e não esquecer, cabe à dupla renovar como gesto de amor fraterno. O anjo da guarda no qual acredito é uma manifestação de irmandade, de sentimentos profundos entre primos, entre irmãos. Ausência de hierarquia ou doutrina. <br /><br /> Nunca comprei a balela de que Deus era brasileiro. Mas meu anjo da guarda é sim e – olha – está a dois quilômetros de mim, na mesma cidade. Nada de trombetas celestiais...o som é um bom jazz do sul dos Estados Unidos. E um bom vinho, acompanhado de queijo brie ou gorgonzola. Eu e meu anjo da guarda, claro, somos também filhos Dele. </span><div><span style="font-family: georgia;"><br /></span></div>Marcus Vinicius Batistahttp://www.blogger.com/profile/04617832464338308222noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4433712634824892213.post-46613647856548766842021-05-21T20:18:00.000-03:002021-05-21T20:18:43.189-03:00As mudanças (Crônicas de uma epidemia # 47)<p> </p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEien8KRrkt-kQRrAsv8eS8Priy6y_gtFdJqUoLO3-zDlmNwSAXMGBiT12j-1LJ_0nSjsL5zjOVX9qOmqV2j1UXX7hAsMMKwYRbnDd3dzW5y6tUUwLLO7oszEauVeoytSoDhdj0muhzuImGG/s1280/nara.jpeg" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1280" data-original-width="590" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEien8KRrkt-kQRrAsv8eS8Priy6y_gtFdJqUoLO3-zDlmNwSAXMGBiT12j-1LJ_0nSjsL5zjOVX9qOmqV2j1UXX7hAsMMKwYRbnDd3dzW5y6tUUwLLO7oszEauVeoytSoDhdj0muhzuImGG/w185-h400/nara.jpeg" width="185" /></a></div><p></p><span style="font-family: georgia;"><b>Marcus Vinicius Batista </b><br /><br />Júnior e Luna ocupavam o sofá para uma brincadeira que usava o tabuleiro de xadrez. No sofá menor, Nara se sentou junto com Tom, ele sem o poder de escolha, por enquanto. Tom nascerá em janeiro. Eles haviam me visitado para um café e retirar uns CDs com um amigo-vizinho. Os CDs, na verdade, são a desculpa para o encontro. Costumamos nos ver de vez em quando, um na casa do outro, jamais em lugares públicos. <br /><br />Se a pandemia deveria representar mudança de vida para melhor, Júnior, Nara, Luna e Tom ganham o campeonato. Tudo bem que de 1 a 0 aos 44 minutos do segundo tempo, com gol de carrinho, mas sem perder a ternura. Do ano que parecia perdido para o ano que termina cheio de esperanças. Do ano que pintava derrota, choro contido, silêncio e luto para o ano que se inicia cheio de vida nova. <br /><br />Os quatro são o exemplo de como as reviravoltas significam parte do caminho e que não há como desperdiçar esforços para se controlar o imponderável. Basta viver com os dois pés firmes em cada degrau da escalada. <br /><br />Júnior viu seu projeto de vida profissional desafinar em dois meses. Em meio ao aniversário de Luna, o primeiro em que fui virtualmente, o Lobo Estúdio fechou as portas. Como receber músicos em ambiente isolado acústica e sanitariamente? Eram 18 anos de uma biografia feliz, com união de pessoas, criações coletivas, intersecções artísticas, uma casa para todas as gentes. <br /><br />Júnior e Nara tentaram medidas práticas. Fizeram a primeira mudança. Entregaram o apartamento e levaram as escovas de dentes e outras coisas mais pesadas para o estúdio. Se não haveria ensaio, pelo menos teriam saraus em família, além de Luna explorando todos os cantos. Dormir seria mais uma etapa da aventura. <br /><br />Tempos depois, Júnior percebeu - ao longo das madrugadas criativas de experimentação musical - que aquela coceira no peito, que de vez em quando ressurgia, num vai e volta desde o ano passado, trazia um grito. Era a encruzilhada que se divide entre a hora de parar e a hora de insistir por quaisquer motivos que não se sabe mais. <br /><br /> Júnior e Nara escolheram mudar novamente. Fechar o estúdio, com ou sem vírus. Recriar suas vidas artísticas. Colocar as finanças em ordem. No meio do caminho, outra porrada: a morte de Dilceu, pai do Júnior. Luna pôde conhecer o avô semanas antes. Algumas das contas foram acertadas entre pai e filho. Só que a morte nunca fornece conforto absoluto. <br /><br /> O luto conviveu com a mudança. Outra mudança de endereço, a segunda no mesmo ano. Parte dos equipamentos foram vendidos, as trouxas nas costas e os quatro – Tom já estava no grupo, aposto que para equilibrar a balança de quem chega e de quem se vai – seguiram para o apartamento do Seu Dilceu. Fariam a transição dos objetos dele e do imóvel. <br /><br /> O ano de incertezas virava um ano de transições. O final de cada capítulo passou a ficar mais nítido, com enredo costurado, dissipando as dúvidas, ainda que alimentando o medo, tirando o sono. Júnior e Nara tinha somente a certeza de que nenhuma ponta ficaria solta ao final de 2020. O medo era alerta com tempero de serenidade. <br /><br /> Numa semana, Júnior me contou: “Estamos na rua procurando apartamento. O do meu pai será vendido.” Alguns dias depois, vejo no Instagram a foto de um imóvel vazio, com Nara sentada no chão. Mudança feita, casa nova. Tom chegará em novo endereço. <br /><br /> Júnior e Nara são um exemplo para mim. Já me permitiram, entre outras coisas, escrever diversas crônicas. Nesta pandemia, foram duas ocasiões literárias. Mas este texto, em especial, não precisa de maiores firulas para que o leitor compreenda o quanto eu os admiro por olhar de frente para quaisquer mudanças, boas ou ruins. <br /><br /> Eles suaram a fervura do caldeirão de sentimentos e emoções que nos marcam durante estes nove meses de pandemia, isolamento, quarentena, home office, vida online. Alegrias, surpresas, lágrimas, sorrisos, chegadas e partidas. Perdas e renascimentos. <br /><br /> Júnior e Nara são meus amigos. Eu me orgulho deles. Luna, a infância pulsante, e o Tom, o garoto que se aproxima, são sobrinhos postiços. <br /><br /> Assim, derrubamos um vírus. Assim, derrubamos seus hospedeiros de más notícias.</span><div><span style="font-family: georgia;"><br /></span></div><div><span style="font-family: georgia;"><b>Obs.: Texto publicado, originalmente, em dezembro de 2020, no livro Os Jardins de Sucupira. </b></span></div><div><span style="font-family: georgia;"><br /> </span><div><span style="font-family: georgia;"><br /></span></div></div>Marcus Vinicius Batistahttp://www.blogger.com/profile/04617832464338308222noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-4433712634824892213.post-52800104640369658152021-05-21T00:31:00.001-03:002021-05-21T00:31:34.975-03:00O menino de 111 anos (Crônicas de uma epidemia # 46)<p> <table cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="float: left;"><tbody><tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEga0jMCgH_SDstAWekj-rkN-NJgxulkaAzr6adBZjLUINHxP8WutUJ-co-XC_3IMHGHynhdOtNE1mqvZTftZG_7b1RrE01c_2dLUvFdEUMLT-RehKS9oIoZsAzjtLCSOSXkcqNEFrRFRqeP/s1600/IMG-20160120-WA0012.jpg" imageanchor="1" style="clear: left; margin-bottom: 1em; margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="1600" data-original-width="960" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEga0jMCgH_SDstAWekj-rkN-NJgxulkaAzr6adBZjLUINHxP8WutUJ-co-XC_3IMHGHynhdOtNE1mqvZTftZG_7b1RrE01c_2dLUvFdEUMLT-RehKS9oIoZsAzjtLCSOSXkcqNEFrRFRqeP/w240-h400/IMG-20160120-WA0012.jpg" width="240" /></a></td></tr><tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Aos sete (107) anos</td></tr></tbody></table><br /></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%;"><span style="font-family: georgia;"><b>** Texto escrito em novembro de 2020 e publicado no livro Os Jardins de Sucupira **</b></span></p><span style="font-family: georgia;"><br /><b> Marcus Vinicius Batista </b><br /><br /> As duas lições vieram na mesma tarde. A primeira aconteceu no supermercado. Fomos comprar as coisas para o lanche. Avô, tia, tio e um amigo viriam para celebrar o aniversário de 11 anos do Vini. <br /><br /> Quando passamos pelas geladeiras, pensei no almoço. Ainda teria que cozinhar, arrumar a casa – Mari, minha filha, tinha adiantado boa parte da labuta -, o fato é que eu estava exausto de uma semana com 12 horas de trabalho diário, em média. Como estávamos só eu e Vini, sugeri que comêssemos uma lasanha. <br /><br /> — O que você acha, Vini? <br /><br /></span><div><span style="font-family: georgia;">Ele olhou umas duas vezes para a geladeira e me disse:</span></div><div><span style="font-family: georgia;"><br />— Pai, vamos levar a de bolonhesa. <br /><br />— Você prefere? <br /><br />— Prefiro. E também é a mais barata, assim gastamos menos aqui no mercado. <br /><br />Fiquei em silêncio. Passamos depois pela seção de produtos próximos do vencimento – de vez em quando têm uns achados por lá – e pegamos a bebida, quase pela metade do preço. <br /><br />Duas horas depois, veio a segunda lição. Vini encontraria colegas de escola nos jardins da praia de Santos, cidade onde moramos. O encontro seria na Fonte do Sapo, lugar tradicional de encontro de crianças e, aos domingos à noite, de baile com música ao vivo. Uma colega fizera aniversário dois dias antes e a proposta era celebrar três aniversários daquele mês de maneira informal. <br /><br />Eu maturava a ideia há uns três dias. Pensava no Covid, nos riscos, no fato de eu ser grupo de risco. Pensava na possibilidade de expor meu filho a muitas pessoas sem controle mínimo. Crianças, quando brincam, não vão se policiar ao extremo sobre os cuidados contra o vírus. Conversamos. <br /><br />— Vini, acho melhor não te levar na Fonte do Sapo. Muitos casos de Covid. <br /><br />— Pai, não precisamos ir. É melhor a gente ficar em casa, disse numa resposta direta. <br /><br />Vini é uma criança do seu tempo, da sua cultura. Adora jogos eletrônicos, sonha com o canal no Youtube, consome animações de todos os tipos e lugares, gosta de séries e filmes de super-heróis. E, como toda criança, tem sua cota de surpresa. Lê Julio Verne (terceiro livro do autor nesta pandemia), gosta de canais de ciência no mesmo Youtube, ainda que prefira mais os influenciadores gamers. <br /><br />Passei dois meses e meio sem vê-lo nesta pandemia. Quando o isolamento começou, ele e a irmã estavam na casa dos avós. Por lá ficaram. Depois deste período, comecei a encontrá-los uma vez por semana na garagem do prédio. Máscaras e limitações físicas. Chegamos a dividir uma pizza da esquina, amparada por guardanapos. Mais dois meses e eles vieram para minha casa. <br /><br />Vini conseguiu colocar em ordem a vida escolar e se adaptar – nunca mais do que isso – à rotina de aulas online. Que a professora não nos ouça, mas o anúncio do término das lições de casa, no início de dezembro, o deixou feliz. Uma criança como qualquer outra, de qualquer tempo. <br /><br />O único amigo presente no aniversário é o Pedro, filho da Mônica e do Jorge. O Pedro, garoto de história incrível, também está isolado nesta pandemia com aulas online. Eles passaram a se ver a cada 15 dias, único momento no qual Vini se encontra com outra criança. Na pandemia, as saídas da casa incluem o supermercado, a farmácia e as casas dos avós. <br /><br />Pedro ficou para dormir. <br /><br />— Tio, foi a segunda vez que dormi fora de casa na vida. A primeira foi na Tia Suzy. <br /><br />No dia seguinte ao aniversário, Vini veio me dizer como se sentia. Que tinha gostado muito da festa (na verdade, o lanche mais um bolinho que a Mônica – a mãe do Pedro – trouxe de presente). Não resisti e perguntei: <br /><br />— Vini, como é fazer 100 anos? (a pergunta é em alusão às reclamações eventuais de qualquer criança. Brincamos que ele parece ter 100 anos). <br /><br />— Pai, tá errado. Eu fiz 11 anos ontem. Então, são 111 anos. <br /><br />Nada como ter um filho que não aparenta a idade que tem. <br /><br /><br /></span></div>Marcus Vinicius Batistahttp://www.blogger.com/profile/04617832464338308222noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4433712634824892213.post-17542049402934956442021-05-20T16:56:00.000-03:002021-05-20T16:56:07.370-03:00A mulher dos meus sonhos (Crônicas de uma epidemia # 45)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgsUZ6lWN4KUBosWCqQDo2uUPTXdHunJg9KY1N-HVWwQeZwBQ0zFygD_fbyOpbxMQfyeqX6s6DhzlIzLokqzWvZ6bpjb_1bnqX7mC1L44JD6khHI-HClA0gjnKRkEq1f4lkZ3YdTtm0JisL/s1920/rail-2803725_1920.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1071" data-original-width="1920" height="223" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgsUZ6lWN4KUBosWCqQDo2uUPTXdHunJg9KY1N-HVWwQeZwBQ0zFygD_fbyOpbxMQfyeqX6s6DhzlIzLokqzWvZ6bpjb_1bnqX7mC1L44JD6khHI-HClA0gjnKRkEq1f4lkZ3YdTtm0JisL/w400-h223/rail-2803725_1920.jpg" width="400" /></a></div><br /><p><b style="font-family: georgia;">Marcus Vinicius Batista</b></p><span style="font-family: georgia;"><br /> É semanal, mas sem dia certo. Não tem hora marcada ou previsão meteorológica que facilite o palpite. Aparece logo cedo, durante a madrugada, no meio da tarde. Basta a porta estar aberta que ela chega em silêncio. Não pede licença, não que precise, mas eu poderia preparar um café, comprar um bolo, torrar um pãozinho. <br /><br />O cenário dos nossos encontros é sempre alegórico, como reza a cartilha de análise. Ela é discreta, não exige o centro das atenções, inclusive porque sabe com clareza quais os sentimentos que nutro por ela. Cada encontro é mais confiável do que assinatura em cartório. <br /><br />Ela nunca vem sozinha. Ela é a coadjuvante ideal, que prefere as participações especiais. Às vezes, vem com a mãe. De vez em quando, brota ao lado de alguém querido. Em outras ocasiões, prefere o combo família, ao lado de pai, irmã e meus filhos. Na irrelevância do enredo, qualquer companhia deve saber o seguinte: ela vai roubar a cena. <br /><br />Ela deu para me acompanhar nesta pandemia. Como é experiente, me alcança pelos atalhos para me encontrar nas curvas mais fechadas, quando os pensamentos de alterar a trajetória ou parar para descanso são ameaçados por teorias de retorno definitivo ao ponto de partida. <br /><br />Esta mulher é sábia. Chega sorrindo, eventualmente se aproxima, se afasta se sinalizo que me sussurre alguma solução mágica. Compreendo – com o esforço racional da reflexão – que a sapiência desta mulher se manifesta pela presença, pelo acolhimento, pelo olhar de apoio. Ela nada contra a corrente, o que significa não se submeter às receitas fáceis, aos milagres dos estelionatários, às fórmulas que derretem no calor dos problemas. <br /><br />Saber, para ela, não é responder. É iluminar de modo que eu saiba que refletir sem agir por impulso representa a lição universal do momento. Como decodificar o silêncio dela? O silêncio é justamente o código que me aponta onde se encontra a tradução, provavelmente em mim. <br /><br />O silêncio traz pela mão o sorriso. Não há escárnio, ironia. Persiste a leveza de quem caminha em outra contagem de tempo, de quem desintegrou este tempo de hoje, de quem percebeu que importância e urgência não podem aparecer sempre na mesma frase, assim como fundamental e essencial. O tempo dela é infinito e limitado ao mesmo tempo. É essencial na fagulha do sorriso, no sumiço de logo mais. <br /><br />Já me acostumei com a ausência de palavras dela. Hoje, é mais uma brincadeira que me diverte assim que acordo. O que será que ela quis dizer? Por que apareceu desta vez? Por que se aproximou mais? Por que prefere o carinho pelo olhar? <br /><br />Traduzir suas mensagens me parecem certa petulância. Confesso que não queimo muito tempo com teorias ou avaliações enciclopédicas. A presença dela me conforta. Tá excelente! Ser coadjuvante é a ilusão que a torna sempre dona daquela narrativa que preencho lacunas para organizar de olhos abertos. <br /><br />Não me lembro de nenhuma das histórias onde ela esteve todas as semanas. Rezo pelo paradoxo: sacrifico as tramas, fico com a personagem. Só me recordo dela. E me sinto bem com isso. A cada aparição semanal, aproveito a chance para renovar a vida dela em minha biografia. Para não classificar a saudade como um elemento de perda numa fase em que falta tanto. <br /><br />A data e o lugar incertos também não me preocupam. Não crio expectativas diante da ausência de referências, de dicas, de mapas para localizá-la. Estar por perto é mais do que suficiente. Estar presente, então... <br /><br />Eu não a encontro fora de mim há quase sete anos, quando seu corpo faleceu. Não haverá outra janela entreaberta nesta existência. O encontro entre nós será aqui dentro quando ela desejar ou assim o definir. Sem datas comemorativas, sem eventos programados, sem rotina ou agenda. A melhor parte é a qualquer hora. </span><div><span style="font-family: georgia;"><br /></span></div><div><span style="font-family: georgia;">Dona Zuleica, minha mãe, deve vir na semana que vem. É o que sei. Basta dormir e sonhar...</span></div><div><span style="font-family: georgia;"><br /></span></div>Marcus Vinicius Batistahttp://www.blogger.com/profile/04617832464338308222noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4433712634824892213.post-27191917770669515332021-05-19T11:59:00.001-03:002021-05-19T11:59:36.159-03:00Lucy e o silêncio do paraíso (Crônicas de uma epidemia # 44)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgTy5ueQkIUVraSiHQOvIK7KBpVLlQp5bjTFLZhnMSdhhAfWfTuq8EHZh8e1y2ivd_KbzBvkodqM0qAgDLAIKEJCaxXevnVhe9CkTTy5l8S_a0IJOiqOoYcQNVsGhJ0i8UwulWFOs5gjes7/s1156/lucy.jpeg" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1156" data-original-width="521" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgTy5ueQkIUVraSiHQOvIK7KBpVLlQp5bjTFLZhnMSdhhAfWfTuq8EHZh8e1y2ivd_KbzBvkodqM0qAgDLAIKEJCaxXevnVhe9CkTTy5l8S_a0IJOiqOoYcQNVsGhJ0i8UwulWFOs5gjes7/w180-h400/lucy.jpeg" width="180" /></a></div><span style="font-family: georgia;"><b><div><span style="font-family: georgia;"><b><br /></b></span></div>Marcus Vinicius Batista </b><br /><br /> Quando me sentei com o livro de Silvia Plath nas mãos, percebi que estava sozinho. Eram pouco mais de três da tarde, e todos tinham seus compromissos, do cochilo pós-almoço a reuniões de trabalho, de visita ao cartório em Santos a desenhos animados na TV a cabo. <br /><br /> As águas repousavam há menos de cinco metros. Eu já havia conversado com elas sob o sol da manhã, de modo que poderia resistir à tentação e à temperatura gelada daquela hora. Até o limoeiro resolvera parar de balançar seu esqueleto. O vento dera uma trégua e meia dúzia de limões-cravo me abençoaram na caipirinha prometida por uma das moças. Aliás, com pedaços de morango na segunda opinião. A certeza de que o presente não era do meu planeta. <br /><br /> É difícil um escravo do urbano perceber, dentro da cidade, quando a própria cidade não existe mais. E notei. Os vizinhos ocasionais me avisavam desde o dia anterior, seja o beija-flor que cutucava a água enquanto fingia que eu era invisível. Sejam as maritacas, que tiraram folga e foram se perder na mata logo atrás, da cor da roupa dos ditadores, da mesma cor irônica da liberdade. O comitê de boas-vindas se completava com os quero-queros e até as pombas, indesejáveis quase sempre, mas ali figurantes competentes. <br /><br /> Mal abri o livro e ela chegou. É quem manda em tudo. Longe de ser autoritária, ela te convence com seus olhos de pedinte. Ela diz – calada - tudo o que você precisa saber para respirar o paraíso. “Aproveite, meu amigo, aqui é assim todo dia. Mas nunca se esqueça de que você vai embora. Parta diferente de como chegou!” <br /><br /> Lucy se aproximou. Nunca tagarela. Nunca dá sermão. Nunca é professoral. Nunca é a dona da tábua das regras. Ela somente se senta ao meu lado e me aponta com a cabeça o que deseja. Se eu disser não, tudo bem. Obedeci. Como poderia negar um instante de prazer para quem me indicou aquele retrato do que a vida poderia ser mais vezes? <br /><br /> Lucy não interrompeu minha leitura. Cordial, ela sabia que eu faria quatro coisas ao mesmo tempo. Ou melhor, de maneira alternada para desfrutar de cada uma delas. Se eu não conseguisse, ela me perdoaria. Eu lia, olhava para a paisagem camuflada no meio do Guaiuba, em Guarujá, coçava as costas de Lucy e escutava o silêncio. Não há melhor dia de folga do que no meio da semana, prazer com um certo egoísmo do qual prometo me curar. <br /><br /> Lucy ouviu que suas amigas chegavam. Saiu discretamente e se postou no corredor, assim poderia me manter sob os olhos dela, me lembrar de que a fotografia daquela experiência era rara e observar quando elas se aproximassem. <br /><br />As duas vieram em diálogo, um assunto que as fazia rir. Elas representam, para mim e para Lucy, o que significa amor maduro. Um encontro que centrifuga amizade, lealdade, acolhimento e cumplicidade. Amor. <br /><br />Lucy correu na direção delas. Saltava como se as duas horas de ausência fossem dois anos. O rabo chacoalhava em tal velocidade que chicoteava os dois lados do dorso. Lambadas carinhosas da convicção de que a coceira a seguir seria de mãos femininas. <br /><br />Minha leitura terminara por hora. Tínhamos novidades de anos a compartilhar e das últimas duas horas a atualizar. Com as águas da piscina em repouso, eu as esperaria por mais alguns minutos. Enquanto isso, Lucy se sentou ao meu lado outra vez. Mais uma coceira, por favor, como ritual do silêncio no meu mundo provisório da tarde de sexta-feira. <br /><br /><br /><b>Obs.: Texto publicado na AT Revista (A Tribuna), em 9 de maio de 2021.</b><br /></span><br />Marcus Vinicius Batistahttp://www.blogger.com/profile/04617832464338308222noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4433712634824892213.post-55431072889567290262021-05-17T20:32:00.003-03:002021-05-17T20:32:44.704-03:00A nascente (Crônicas de uma epidemia # 43) <div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgoaFTyiiODLSyRjAK6LXOJMn93hDCwOD_RZRceBqLG0cyyFtSUiZhlJYCxipI-YGJl-vtBhjmIZuK3wndmQ2lBAdAwvtQcNIFT2TK5NT_t6_j754WbR0gEJnWt11c4j71sBYkLpce3f54T/s1920/crow-river-4494413_1920.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1280" data-original-width="1920" height="266" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgoaFTyiiODLSyRjAK6LXOJMn93hDCwOD_RZRceBqLG0cyyFtSUiZhlJYCxipI-YGJl-vtBhjmIZuK3wndmQ2lBAdAwvtQcNIFT2TK5NT_t6_j754WbR0gEJnWt11c4j71sBYkLpce3f54T/w400-h266/crow-river-4494413_1920.jpg" width="400" /></a></div><br /><span style="font-family: georgia;"><br /><b>Marcus Vinicius Batista </b><br /><br /> A trilha já tinha as marcas dele, que suava em bicas. Respingava mais do que poderia respirar. A camiseta grudava no corpo por conta da caminhada mais longa, mal planejada, improvisada no desconhecimento do caminho. Os pés queimavam das bolhas que os dedos pariram. Arrogante, pensou que poderia andar com as intenções. <br /><br /> O menino não poderia parar até chegar lá. Ele era mais lento do que os demais, mas sempre cumpria a rota. Persistente, disse a mãe. Incansável, exagerou o pai, numa palavra que levou uns segundos para entender como elogio. <br /><br /> Ele não era exatamente um menino. Ela o chamava assim. Os amigos juraram que ela não existia. Amigo imaginário depois de velho?, um deles brincou. O menino pisava e adormecia as dores pela fé. Chegaria. Não seria a lebre, ainda mais naquele estado de fiapo. Seria a tartaruga, com a mochila cheia de melancolia como casco. Seria também a cobra, não como alguém ardiloso, mas a criatura que trocaria de pele quando a encontrasse. <br /><br /> Ele perdeu a noção do tempo. Não percorria uma trilha assim desde o início do século. Preparou-se com exercícios, alimentação razoável. O problema é que a trilha não exigia tanto do corpo. Reivindicava fôlego da alma. Os pés sangravam o tanto que qualquer peregrino de primeira viagem sentiria. O sangramento, no entanto, não se estancava por dentro. A hemorragia interna só teria sentido na medicina da mata. A metamorfose só viria se encontrasse a nascente. <br /><br /> Os braços, percebeu depois, ficaram anestesiados. Como a trilha era estreita, o menino os raspava na vegetação. Não carregava nada nas mãos. Nem água. Muitos espinhos abriram pequenos cortes. Uma sangria que ele entendia como parte da travessia. Limpeza. Por ali, sairiam as angústias, as frustrações, quem sabe sua estupidez. Ele saberia ao primeiro olhar da moça. Saberia... <br /><br /> Os respingos que brotavam da testa se misturavam com as gotas vermelhas dos braços. Sorriu ao se ver parcialmente rosa. Apertou o passo, pois o cheiro da vegetação dava a sensação de chuva. Que chovesse! Lavaria mais rápido as impurezas de uma carcaça que não sustentava mais a vida a seguir. No fundo, o temor era pelo anoitecer. Não sabe de onde veio, mas passou a sentir calafrios com a escuridão, não amadurecia de maneira alguma o olhar na penumbra. Desconfiava que isso mudaria ao encontrá-la. <br /><br /> A trilha se fechava ainda mais. Ali, não tinha máscaras. Deixou o rosto à mostra. Que sangrasse também. A recompensa se aproximava. Tudo seria aliviado. Sede. Fome. Cansaço. Dor. Tudo seria renovado. A vida. O amor. A generosidade. O espírito. <br /><br /> Ouviu pela primeira vez o som da água. Não era chuva profetizada pelo menino. Era água corrente. Aquela de quem tinha ouvido falar. Não era causo. Pelo menos, o cenário não era lorota do velho que o acolheu, ouviu, sorriu e explicou: “Vá até ela! Só assim poderá ser sua! Menino, cuidado...sua é partilha. Você e ela. Sua nunca é posse no final da trilha.” <br /><br /> Ele se lembrou das palavras do homem – o nome do sujeito se perdeu – quando a trilha terminou. Era uma pequena clareira. O Verde o cercava. Não via a origem do som. A água seria mais uma ilusão numa pilha de decepções. <br /><br /> Sentiu-se uma fraude. Quando assentou a culpa, sentiu-se vítima de uma fraude. Quem o contou da maravilha mentiu. Aquele sujeito ganharia o que se não o veria sofrer ao longo do trajeto? Como não enxergou o conto da carochinha, nome merecido para o menino que se comportou feito moleque? <br /><br /> Ele estava exausto. Tirou a mochila das costas. Mais leve, sentou-se no pedacinho de terra que se espremia refém do verde da mata. Respirou até normalizar o fôlego. Deixaria os pés para depois. A volta faria mais estragos. Deitou. E quase saltou de susto quando fechou os olhos. Ouvia a água outra vez. Bem perto. Dava para sentir o frescor. <br /><br /> Abriu os olhos. Nada. Silêncio e o mesmo ar modorrento. Cabelo encharcado. Camiseta peguenta. Os pés matando de ardência. Encostou a cabeça no chão. Ao fechar os olhos, o gosto de água na boca com o alívio que só os viajantes testemunham. O menino entendeu a lógica. Tinha que esquecer sua dependência sensorial. Explorar os outros sentidos, com a compreensão que, deste jeito, veria com transparência. <br /><br /> Nunca soube se dormiu. Chegou a desconfiar de alucinação. Preferiu comprar a versão dele próprio, de percepção de consciência. Dele próprio em termos, pois o velho falara nessa via de acesso ao interior da floresta. O fato é que ele visualizou a nascente e jurava imaginar o leito caudaloso do rio no ápice da correnteza. <br /><br /> O menino se deixou levar pelas águas. Sentiu-se purificado. Os pés, amortecidos ou não, pararam de doer. Os braços estavam secos no tom de recém-nascido, assim como seus cabelos e sua camiseta. As águas mudavam de forma, pareciam-se com ela, a moça, e voltavam a percorrer seu curso. Anos depois, ele crê que, no mínimo, viu o rosto dela na nascente. E como ela era linda...É linda, nas memórias do velho que hoje procura um novo menino. </span>Marcus Vinicius Batistahttp://www.blogger.com/profile/04617832464338308222noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-4433712634824892213.post-45328039920487589602021-05-17T15:02:00.001-03:002021-05-17T17:33:58.664-03:00Ânsia de viver (Crônicas de uma epidemia # 42)<p> </p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjV99dNWLONeonHOSu6AdkWajlLHq_e1cHmyos96THl7cRnR-bHYXXwrnBin4Q1SFnBllc_jd2iY8go6zDCt0qCuDDWvsCJbozIE7HK3zf3oUM7IW0r93oFG7wlgM7ZHN-NGb6VMjRg3apn/s1920/freedom-2940655_1920.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1280" data-original-width="1920" height="266" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjV99dNWLONeonHOSu6AdkWajlLHq_e1cHmyos96THl7cRnR-bHYXXwrnBin4Q1SFnBllc_jd2iY8go6zDCt0qCuDDWvsCJbozIE7HK3zf3oUM7IW0r93oFG7wlgM7ZHN-NGb6VMjRg3apn/w400-h266/freedom-2940655_1920.jpg" width="400" /></a></div><br /><p></p><span style="font-family: georgia;"><b>Marcus Vinicius Batista </b><br /><br /> Ela acordou dolorida. Dormiu pouco, cinco horas no máximo. Mas não se sentia doída pela noite de corpo inquieto regada à trilha sonora de filme de amor. As pernas até estavam bem, diante dos últimos dias de musculatura inflexível e caminhadas restritas. <br /><br /> Ela se sentou na cama de modo doloroso. Não pretendia se levantar, mas seu futuro próximo exigia uma agenda de compromissos junto com as crianças que riam pela manhã de muito a fazer. O peito estava em montanha russa, diante das últimas horas em que a musculatura cardíaca ameaçou parar e o choro teimou em represar. <br /><br /> Ela se levantou, ouviu o burburinho infantil, imaginou quem a clamava pelo celular. Era ele. Ele havia morrido há pouco tempo. Ela o ressuscitara a cada letra de música, a cada palavra de afeto, a cada vírgula bem ou mal tocada, uma narrativa que se paralisara pela recusa de um ponto final. Os dias do mês foram mágicos; o anteontem, espiritual; o ontem, aterrorizante. <br /><br /> Não havia jeito de respingar uma lágrima. Não haveria escoadouro para a mágoa das horas anteriores. Se ainda fosse uma febre...Se ainda pudesse vomitar e despejar tudo privada abaixo. A dor estava ali de pé, olhando de volta, o que a alimentava de aflição porque jurava ter se acostumado àquela sensação de impotência com o passado. <br /><br />Presa no topo da montanha, só existia um caminho viável para ela. Falar e tentar, resistir ao frio emocional com muito otimismo, reescrever o presente da manhã. Não desistiria das escolhas da última semana. <br /><br /> Como sobreviver às alternativas da semana passada se mal conseguia entender como seria o próximo domingo? Em qual endereço se fixar? Com quem conviver? Sempre independente, a vida desta vez deu a ela uma carta inativa, que só poderia ser aberta com a anuência alheia. Uma nova fase de perguntas e respostas. As perguntas seriam feitas por desconhecidos diplomatas ou, no melhor cenário, por gente que mudou de comportamento. As respostas deveriam ser adequadas, e não as que realmente acreditava. <br /><br /> Olhou para os braços e notou que os hematomas emocionais ganhavam cor outra vez. Não seria como 2018, prometera a si mesma. Aquele amor enciumado desistira e desejava assombrar no capítulo errado. Se tivessem que ficar no corpo, que os hematomas ficassem em tempo provisório, que sumissem com o desfecho do dia, que desintegrassem com a palavra de amor da novidade. Era hematomas de outra natureza, certeza. <br /><br /> Ela tinha a sensação de ressaca, sem ter ingerido uma gota. Era a represa de água salgada em mim, pensou. Duvidava se conseguiria colocar para fora. O histórico indicava o oposto. Apontava o hábito de remoer por tempos além do necessário. Mas tinha uma esperança. O outro! <br /><br /> O outro poderia vir para ajudá-la. Vir sem sair de onde está. Vir pelo que os aproximou. Chegar pelas letras, correr pelas palavras, firmar as vírgulas como cajados na peregrinação até ela. Ah, o outro vai ralar para chegar. Assim, não haveria ponto final. No máximo, a união entre a vírgula e o ponto, naquele intervalo maior sim, mas que garantiria a continuidade do que sentia no mesmo dia, sem deixar para amanhã de manhã, quando teria que levantar outra vez. <br /><br /> Ela sabia que os pés de baile ficariam em ponto de dança, doloridos ou dolorosos. Alongaria a coluna com prazer, com os estalos de liberdade vertebral. O corpo entregaria a mensagem: ela era ânsia de viver!</span><div><span style="font-family: georgia;"><br /></span></div>Marcus Vinicius Batistahttp://www.blogger.com/profile/04617832464338308222noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-4433712634824892213.post-77887502879962325202021-05-16T20:03:00.000-03:002021-05-16T20:03:04.270-03:00O xamã e as fadas (Crônicas de uma epidemia # 41) <div><span style="font-family: georgia;"><br /></span></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjRCd3LF1M7PsNzagIEIFg4kNFIJwjfPSsMHojbtjx5C2tDhvyMLwKpdJyygSGewn4wcVHhacaHOgL9ExmWiUeHdg5ykMMUrbK1f43TusZ7HYuVRUwbMaOmTtVzz1iMIBXfgCtlEpEMzuH3/s1920/fantasy-2702997_1920.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1075" data-original-width="1920" height="224" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjRCd3LF1M7PsNzagIEIFg4kNFIJwjfPSsMHojbtjx5C2tDhvyMLwKpdJyygSGewn4wcVHhacaHOgL9ExmWiUeHdg5ykMMUrbK1f43TusZ7HYuVRUwbMaOmTtVzz1iMIBXfgCtlEpEMzuH3/w400-h224/fantasy-2702997_1920.jpg" width="400" /></a></div><br /><span style="font-family: georgia;"><br /><b>Marcus Vinicius Batista </b><br /><br /> A fada asiática perguntou sem me rodear, pelo Whatsapp (sim, criaturas mágicas do século 21 também se atualizam pela tecnologia): <br /><br /> — A que horas chega o Xamã? <br /><br /> — Em duas horas! <br /><br /> Não houve mais perguntas. Não desconfiei. Elas pensam assim mesmo! Elas falam de forma cifrada, quando desejam me fazer pensar. <br /><br /> O Xamã apareceu na hora marcada. Não era uma consulta formal, não haveria ritual de curandeirismo. O xamã moderno usa seu poder de comunicação com a ancestralidade via boa e velha conversa. Sentou-se na sala, admirou as instalações, falou de literatura, de filmes, de cultura pop. Nada de pose ou arrotos de conhecimento e palavras corporativas. <br /><br />O Xamã trabalha com a simplicidade de quem sabe o valor de ser invisível, de quem vem e volta para o meio do mato sem perturbar a natureza, sem empapuçar o meio urbano de receitas de bolo ou fórmulas milagrosas de pacote turístico. <br /><br /> Como costuma estar escrito na vida cotidiana, assim que fui ao banheiro, o interfone tocou. Pedi que o Xamã atendesse e veio a dúvida do sábio: <br /><br /> — Onde aperto para abrir a porta? <br /><br /> — Asterisco 1, mestre! <br /><br /> Ele ainda se desculpou: <br /><br /> — Sabe, é que moro em casa, só tem campainha. <br /><br /> Quando abri a porta, era um velhinho com uma cesta na mão esquerda, daqueles sujeitos de rosto simpático, como os magos de desenhos animados. Ele confirmou meu nome e disse: <br /><br /> — Olha, é para você mesmo! <br /><br /> — Quem mandou? <br /><br /> — Não sei. Sei que é pra você. <br /><br /> Diante da resposta típica de desenho animado, desejei ótima Páscoa e fechei a porta. O Xamã, distraído de sua sapiência, também fez expressão de surpresa. Repousei a cesta na mesa e fomos os dois, feito crianças, explorar a encomenda, desvendar o crime do presente-surpresa. <br /><br /> Era uma quadrilha. Cinco fadas. Todas cúmplices na composição da cesta, que permitiria dar início ao ritual com o Xamã. Começamos com a bebida gelada, com leve teor de álcool. Ali, soltamos os espíritos. Depois, saboreamos grãos em estado natural e de uma variação verde, mais temperada. O nirvana se aproximava. Era a consagração em andamento. <br /><br /> Uma hora e meia depois, chega uma das fadas. A fada literária sempre flutua com um livro a tiracolo. Ele veio com o Deus do Trovão, na percepção do meu filho e sua sensibilidade de criança. Para agradar a fada, o menu com letras é simples: café puro, pão e um dos ingredientes que veio dos céus: queijo gorgonzola. Na cesta mística, o queijo veio em formato de patê. <br /><br /> Encaramos mais três horas de ritual. Não senti o tempo galopar. Só notei quando o Xamã, em sua discrição, precisou se retirar para curar outro espécime desta terra. O paciente – foi a palavra que achei – se chamava Pierre, e a sofisticação de seu modo de vida não se limitava ao nome francês. O Xamã garante que Pierre o ensina mais do que aprende. <br /><br /> A pandemia isolou as demais fadas. Agradeci por mensagens no início da noite. A fada japonesa e sua delicadeza de gestos e vocabulário. A fada bonjour, adepta de um amor de vida inteira. E a fada das Liras, que escreve como se toca o instrumento musical homônimo. <br /><br /> Xamã? Fadas? Essa gente existe, pode apostar. São pessoas comuns, que lutam, sofrem, amam, pagam contas. São seres incomuns, capazes de cuidar, acolher, ajudar, sem pedir nada em troca. São criaturas desta dimensão, cientes de que basta perambular por perto, incapazes de ditar regras, determinar caminhos, julgar e condenar à revelia de quem sente dor. São gente. São meus amigos e suas formas mágicas de curar. <br /><br /><b>Obs.: Texto publicado na AT Revista (A Tribuna), em 11 de abril de 2021.</b></span><div><span style="font-family: georgia;"><b><br /></b></span></div>Marcus Vinicius Batistahttp://www.blogger.com/profile/04617832464338308222noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4433712634824892213.post-11254144252193431852021-05-14T14:10:00.000-03:002021-05-14T14:10:04.961-03:00O jardim secreto (Crônicas de uma epidemia # 39) <div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhsdS5vlOj6BPn1cY2VCjt6o4SItJSQke9tNAuBGdalAIAxPtNeDB21Xs2kU7dh-AtKAKgyMInh4KkbQiXeR-tgTag7Z9-ExWEC8ZmLcAHU9956IMmBtXKG-lr9M9nzEMNkUIIrLy7Y__KF/s1920/garden-930815_1920.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1275" data-original-width="1920" height="265" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhsdS5vlOj6BPn1cY2VCjt6o4SItJSQke9tNAuBGdalAIAxPtNeDB21Xs2kU7dh-AtKAKgyMInh4KkbQiXeR-tgTag7Z9-ExWEC8ZmLcAHU9956IMmBtXKG-lr9M9nzEMNkUIIrLy7Y__KF/w400-h265/garden-930815_1920.jpg" width="400" /></a></div><br /><span style="font-family: georgia;"><br /><b>Marcus Vinicius Batista </b><br /><br /> Assim que contornei o muro da escola Olga Cury, ouvi o sussurro. Eram duas vozes, uma mais velha, outra mais aguda, talvez feminina. Os risos se revezavam com o tom mais didático do sujeito mais velho. Era meio da tarde, e o calor me empurrava para a sombra como tática de sobrevivência na ida e na volta do supermercado. <br /><br /> Meus ouvidos fofoqueiros (oficialmente, jornalísticos) se aguçaram conforme eu me aproximava. Mesmo assim, não conseguia escutar o diálogo, somente as vozes e os risos. No meio da quadra, eu os vi, quase transgressores, agindo como se fosse normal, alheios às poucas testemunhas, alheios a mim. <br /><br /> — Força, menino, sobe mais! <br /><br /> — Tô conseguindo, vô! Tô conseguindo (e gargalhava). <br /><br /> — Vai, mais um galho, mais alto. Aeeeeeee!!! <br /><br /> O menino, com cerca de sete anos, estava descalço, só de bermuda. Ele se agarrava no galho acima e colava a barriga no tronco da árvore, na tentativa de pegar impulso. O avô, com pés no chão, olhos no moleque e passado em revista, empurrava o neto pelas pernas. Os braços esticados eram o limite da ajuda. O menino teria que macaquear sozinho dali em diante. <br /><br /> O Jahu, conjunto de prédios no bairro da Aparecida, em Santos, é meu jardim emprestado há alguns anos. As ruas, cá entre nós, deveriam se chamar alamedas. Passo por lá todos os dias, feito beato na missa. Desvio o caminho para não me desviar do prazer quase pecador de desacelerar num cotidiano que insiste no culto à pressa. <br /><br /> O trajeto sempre muda. Novos contornos, outras velocidades, paradas estratégicas. Na semana passada, estanquei diante de um besouro que fugia do calor do concreto, ansioso por meio metro de grama. Foram uns segundos de conversa com meu filho Vini, de 11 anos, temperados com uma pitada de fantasia. Quem sabe ele se lembra destas caminhadas que me aliviam do sacode emocional da pandemia? <br /><br /> O oásis urbano tem o hábito de me avisar: olha, o interior é aqui. Relaxe, reduza o passo, observe e sinta. Numa esquina, um senhor limpa a casinha de passarinhos, trocando a banana de ontem pelo mamão de agora. Não dá cinco minutos e o refeitório ao ar livre recebe o revezamento de clientes de asas. <br /><br /> Na vias protegidas pelas árvores, até a mentalidade de quem passeia com cachorros funciona em outro ritmo. Em vários trechos, os moradores adaptaram e instalaram garrafas pet, que viraram suporte para sacolas de supermercado. Calçadas impecáveis, nenhum dono de cachorro pode dizer que se esqueceu do essencial. <br /><br /> O Jahu não é apenas um lugar de passagem. Eventualmente, ele é o endereço final, onde moram bons amigos, como Eduardo Cavalcanti, Thaís Macedo e Aline Porta Nova. Gente que só elogia onde vive, que não troca o vento e o respiradouro dos corredores verdes por vigas e ferros gourmets. <br /><br /> O menino e seu avô ressuscitaram uma pintura que eu não apreciava há dez anos. Na ocasião, um abacateiro na avenida Pedro Lessa reunia todo sábado meia dúzia de crianças. Até tábuas foram instaladas por um morador para que a molecada simulasse, na medida do possível, a casa na árvore. O morador faleceu, as crianças cresceram e o abacateiro foi diluído na paisagem nebulosa de escapamentos de caminhões à margem do porto. <br /><br /> Não sei qual era a árvore onde o menino grudou sua futura lembrança com o avô. Não achei necessário perguntar seus nomes ou puxar papo. Não me lembrei de fotografar. Só parei de andar e, em silêncio, vi. Se o menino chegou ao ponto mais alto da árvore, não fiquei para conferir. A última coisa que desejava era atrapalhar o passado em forma de presente. <br /><br /><b>Obs.: Texto publicado na AT Revista (A Tribuna), em 28 de março de 2021.</b><br /></span><br />Marcus Vinicius Batistahttp://www.blogger.com/profile/04617832464338308222noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4433712634824892213.post-18036699675532755822021-05-13T12:29:00.000-03:002021-05-13T12:29:34.612-03:00A menina e a mulher (Crônicas de uma epidemia # 38) <p> <a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhz04GxkmHcLociY3qde4vGrCJrKp38dDoTAaBOC5OS-PfjCuUxYk8aNltiAJcSHESFi9bEjDf7fgJp2w9zxIbsaQQ6bdQbwyPlManRik3LeGoaGqAr8Sc_HlKu9TXBdwTZqE31KVrk64j8/s1920/girl-2696947_1920.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em; text-align: center;"><img border="0" data-original-height="1920" data-original-width="1920" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhz04GxkmHcLociY3qde4vGrCJrKp38dDoTAaBOC5OS-PfjCuUxYk8aNltiAJcSHESFi9bEjDf7fgJp2w9zxIbsaQQ6bdQbwyPlManRik3LeGoaGqAr8Sc_HlKu9TXBdwTZqE31KVrk64j8/w400-h400/girl-2696947_1920.jpg" width="400" /></a></p><br /><span style="font-family: georgia;"><b>Marcus Vinicius Batista </b><br /><br /> Ela é só uma menina. Ainda se empolga com o programa de TV preferido, se envolve com os personagens a ponto de falar deles como se os conhecesse desde o berço, com atestado de caráter, sem recursos de edição. Atrasa um compromisso para degustar as últimas novidades de quem virou o centro dos holofotes da semana no picadeiro. <br /><br /> A mulher pisa duro e se enfurece quando se vê diminuída por quem tem mais tempo de carteira de identidade e, só por isso, adota a postura do “você-sabe-com-quem-está-falando”, mesmo sem conhecimento de causa dos problemas cotidianos. A braveza pulsa contra quem se camufla na oratória que enverniza o medo do cenário que é inédito para todos os envolvidos, sejam velhos, sejam jovens. <br /><br /> A menina se encanta com o primeiro amor, aquele que não se compara com passado algum, a paixão que determina escolhas de caminho, que finca as raízes no presente e ignora quaisquer perspectivas, planos, sonhos, regras e convenções das algemas sociais. Sente. Vive. Convive. <br /><br /> A mulher chora de canto, silencia no meio do diálogo, ouve quem de direito e experiência profissional e mantém a pose para dar conta de um dia após o outro, do luto que esbarra na vida prática após a perda de uma referência. A morte pela doença com nome de signo e trópico, a morte pelo maior de todos os males, já dizia o livro de um médico indiano. <br /><br /> A menina relaxa e se entrega à dor quando a porta do quarto se fecha no início da madrugada, quando o sono é obrigação de alívio para o peso que afunda os ombros e tenta encurvar as costas. A menina que desmaia no meio da frase ou se derrete em água salgada ao encostar a cabeça no peito de quem a ama tanto, mas não faz barulho, apenas acolhe, porque é o que pode e deve ser feito por amor e para resistir à impotência do momento. <br /><br /> A mulher ressuscita na manhã seguinte, de rosto limpo, sem adereços que a incomodam e, de roupa e chinelo de dedo de gente comum, vai para a briga contra os discursos sedutores, a burocracia insensível dos papéis fantasiados de neutralidade. Ali, aprende, pergunta, consulta, pede auxílio, pois precisa dar conta da pauta do dia, muitas vezes esquecida por quem sequer sabe que um dia se lembrou. <br /><br /> A menina e a mulher são muitas. Elas estão todo o dia por aí, perto de nós, invisíveis, sem marketing, com ou sem imagens retocadas, em defesa própria, em defesa das duas que habitam um mesmo corpo, imperfeito e – por isso – essencial. <br /><br /> Quem observa somente as derrotas delas cai na armadilha de crer que ambas caem e se espatifam. Quem amplia a lente e admira as vitórias e as lições do que se perde enxergará as cicatrizes das lambadas da truculência. Quem dá um passo atrás e as observa como uma só se sente na clareira após a mata fechada. O ar atropela, a luz balança, o equilíbrio floresce. A menina e a mulher estão vivas e prontas a nos ensinar. <br /><br /> Tenho o privilégio de conhecer muitas delas. Agora, penso em uma. A menina que vi nascer, a que dou boa noite antes de dormir e com quem divido as refeições, dores e alegrias em tempos de montanha russa. A mulher que vejo se tornar pelas escolhas, pelos erros de juventude, pelos acertos de uma maturidade que começa a se apossar dela sem pedir licença. <br /><br /> No resumo da ópera em andamento, livre de hipocrisia, uma grande notícia: ela será melhor do que eu. Talvez já seja! Viva!<br /><br /><b>Obs.: Texto publicado na AT Revista (A Tribuna), em março de 2021.</b><br /></span><br />Marcus Vinicius Batistahttp://www.blogger.com/profile/04617832464338308222noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4433712634824892213.post-79702816880679553012021-05-11T13:28:00.000-03:002021-05-11T13:28:10.806-03:00O lugar mais antigo do mundo (Crônicas de uma epidemia # 37)<p> <table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><tbody><tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiEsL4b9vtA7KYrH1cbwi858oVaWa-o6VMARWQ6lvqfwap2UoGDLDpnmKsLLx9Nyv7L8pihwxWdhG-vUKhddP0TCOKtJQDVSSnIBVvSBG5C1aEreFvBL4VbIzzb7Y5UhtijqcuP5BQn_vP_/s799/ch%25C3%25A1+mate.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="431" data-original-width="799" height="216" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiEsL4b9vtA7KYrH1cbwi858oVaWa-o6VMARWQ6lvqfwap2UoGDLDpnmKsLLx9Nyv7L8pihwxWdhG-vUKhddP0TCOKtJQDVSSnIBVvSBG5C1aEreFvBL4VbIzzb7Y5UhtijqcuP5BQn_vP_/w400-h216/ch%25C3%25A1+mate.jpg" width="400" /></a></td></tr><tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Crédito da foto: Diário do Litoral</td></tr></tbody></table><br /></p><span style="font-family: georgia;"><b>Marcus Vinicius Batista </b><br /><br /> Enquanto esperava na fila do cartório, a poesia dele me divertia: <br /><br /> — Dois reais a bacia da laranja! Dois reais a bacia do limão! A senhora tem coragem? Quem tem coragem de vender barato? Eu tenho! Não estou nem aí! Não tenho nada no meu nome! <br /><br /> Com pequenas variações no texto, às vezes sem a laranja, às vezes sem o limão, ele me mantinha sorridente feito criança que se diverte com a repetição do mesmo trecho do filme. Eu olhava para os lados e ninguém na fila prestava atenção na trilha sonora. Alguns no celular. Dois amigos batendo papo. Um sujeito checando os documentos pela enésima vez. <br /><br /> Ali, embaixo do sol de quase meio-dia na avenida Pedro Lessa, percebi que não visitava uma feira livre há cinco meses. O tempo de ausência me surpreendeu, mas o motivo era claro: assim que começou a campanha eleitoral, eu desapareci de um de meus lugares favoritos. <br /><br />Santinhos que saltam das mãos de quem tem pecados demais machucam a feira livre. Os visitantes bissextos trazem os sorrisos de vento – ao contrário do pastel – e ofuscam os pés de chinelo de dedo, os carrinhos de metal ou de pano, as rodas de gente salivando enquanto o caldo de cana flutua da jarra de inox para o copo de plástico. <br /><br />Adoro o passeio por feiras, que estão conosco desde que decidimos nos aglomerar e vender alguma coisa. Em viagens, não troco uma comida de rua por nada de grife. A feira do Sesc, por exemplo, é o território das miçangas que me carregam e das comidas de distintas certidões de nascimento. Uma das minhas primeiras matérias foi na feira da avenida Francisco Glicério, num sábado pela manhã, há quase 30 anos, por ordem do professor Dirceu Fernandes Lopes. <br /><br />No entanto, minha amizade com as feiras se fortaleceu quando me tornei professor, há quase 20 anos. Descobri o prazer de atravessar a feira da rua Oswaldo Cruz, às terças, quando retornava da aula para casa. O caminho se tornou mais longo, porém divertido. Encontros inesperados com amigos, gente de todos os tipos, gente que sua de verdade, testemunhos de negociação, as flores do final das barracas. Minha procissão era semanal. Depois, mudou para o sábado, na da rua Delfim Moreira, com ataques cirúrgicos para garantir o almoço-pastel. <br /><br />Assim que sai do cartório, escolhi o trajeto previsível. Resolvi atravessar a feira para não comprar nada. Somente olhar as pessoas, ouvir a cantoria dos preços em queda, sentir o cheiro de peixe, de algumas frutas, namorar um ou outro tempero. <br /><br />No finalzinho dela, veio o segundo choque no palácio da memória. O carrinho estava ali, sozinho, encostado no canteiro central da avenida. Ao me aproximar para matar um desejo de semanas, fruto de conversa com dois amigos diferentes, me dei conta que estava sem dinheiro vivo. Só dinheiro de plástico. <br /><br />A segunda olhada resultou no sorriso de conquista. A maquininha verde brilhava ao sol. O dono do carrinho se materializou. Confesso que desisti de saber o segredo do mate com abacaxi e limão dos carrinhos. Brinco que, às vezes, é melhor não saber. Não consigo fazer igual. Amigos também abandonaram a ideia e se contentam em produzir cópias mal acabadas da bebida. <br /><br />Em menos de cinco minutos, o dono matara minha sede, recebera o pagamento virtual e me permitira seguir para casa, com dois desejos realizados numa ida ao cartório só. <br /><br />Carrinho de mate com máquina de cartão? Um feirante criativo? Tradição e modernidade que se fundem ou – o mais provável – eu que me perdera no tempo das memórias afetivas. Tanto que me esqueci de pedir o chorinho. </span><div><span style="font-family: georgia;"><br /></span></div><div><span style="font-family: georgia;"><b>Obs.: </b></span><b><span style="font-family: Arial, sans-serif; font-size: 12pt; line-height: 24px;">Texto publicado na AT Revista (A Tribuna), em 28 de fevereiro de 2021.</span></b></div><div><b><span style="font-family: Arial, sans-serif; font-size: 12pt; line-height: 24px;"><br /></span></b></div>Marcus Vinicius Batistahttp://www.blogger.com/profile/04617832464338308222noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4433712634824892213.post-25789709838059423112021-05-11T13:12:00.003-03:002021-05-11T13:12:45.253-03:00 O mar, a bicicleta e a casa da “cura” (Crônicas de uma epidemia # 36) <div><span style="font-family: georgia;"><br /></span></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi8Bs9kYpQRj9FqvL_upcMizDIGkA-Tz8KCJWeFTG1r8VZrExGmiFVTv20HKeP4K-RvPsXcUYzHt6vrHl256Epfz-3M_iVl24qRVc2JnYH0nr2fU7uUdBH-kII0NbjAZf-Atcm7dkgmrI08/s1920/ocean-1867285_1920.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1280" data-original-width="1920" height="266" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi8Bs9kYpQRj9FqvL_upcMizDIGkA-Tz8KCJWeFTG1r8VZrExGmiFVTv20HKeP4K-RvPsXcUYzHt6vrHl256Epfz-3M_iVl24qRVc2JnYH0nr2fU7uUdBH-kII0NbjAZf-Atcm7dkgmrI08/w400-h266/ocean-1867285_1920.jpg" width="400" /></a></div><br /><span style="font-family: georgia;"><br /><b>Marcus Vinicius Batista </b><br /><br /> Meu corpo precisava de reparos. Poderia culpar a pandemia pela negligência, mas seria uma versão distorcida do negacionismo que – no fundo – chegaria no mesmo ponto. A responsabilidade é minha, sem terceirizações, mas com direito a um pedido de socorro. <br /><br /> São 40 dias, com apenas duas folgas no período. Ou eu sacudia a árvore ou deixava os cupins comerem o que sobrou deste tronco de quase 50 anos e mais de uma década de diabetes. <br /><br /> O primeiro passo envolveu uma junta médica. Do urologista ao clínico geral. Visitarei, nos próximos 15 dias, o cardiologista, o endocrinologista e o ortopedista. Foram cinco visitas ao laboratório clínico para exames, mais aqueles aparelhinhos que te acompanham 24 horas. Um mapa detalhado dos estragos na carcaça e as saídas para remendá-la nos próximos meses. <br /><br /> Ao mesmo tempo, fui ao lugar onde chamo de “casa da cura”. O apelido retribui a generosidade com o acolhimento recebido naqueles reencontros da vida. Atravesso duas vezes por semana a entrada da casa branca, sem placas, perdida entre dezenas no bairro do Embaré, em Santos, que me cumprimenta com a horta de temperos, alfaces e couves, contraste com as máquinas de repetição, seus pesos e forças. <br /><br /> A casa branca ressuscitou a amizade com Márcio Valente – sujeito de sobrenome autoexplicativo – após duas décadas. Antes, parceiros de futebol; hoje, cúmplices na visão de mundo e na necessidade de mudança de vida. <br /><br /> Como as visitas à casa acontecem somente duas vezes por semana, minha casca pedia mais para levar adiante o processo de cicatrização. Tinha que retomar velhas paixões, uma relação que me fornecesse combustível para acalmar a vontade diária de desistir. Sim, penso nisso todos os dias. <br /><br /> A bicicleta são minhas pernas sobressalentes, mas a preguiça e outras bobagens transformaram meu casamento com ela num vai-e-vem quase adolescente. Os novos sinais apareceram no final do ano passado, quando passei a resolver alguns problemas profissionais de bike. Minha filha Mari é a companheira de pedal. Paciente para me deixar ditar o ritmo, motivadora para permitir que eu definisse o tamanho da distância, de acordo com o nível das queixas do meu joelho direito. <br /><br /> Por sugestão do Valente, pedalar virou oração diária. Como resistência às tentações do sedentarismo, a inspiração veio de um homem de fé. Marcelo Sório é outro amigo que fiquei quase duas décadas sem ver. A pandemia nos reconectou e suas histórias me atingiram como fábulas franciscanas. Um sujeito que pedala 70 quilômetros e fala disso como um sacerdote. Sem empáfia, com brilho nos olhos, com amor no relato dos destinos percorridos. <br /><br /> Mari abraçou a causa paterna. Uma hora diária, às vezes mais. Minha irmã Catarina e meu cunhado Evandro foram parceiros em parte do caminho. Pedalar é um respiro de final de noite, quase sempre por caminhos alternativos. <br /><br /> Quando não posso ir à casa branca ou ver a cidade da bicicleta, os pés molhados me sustentam. O joelho reivindica menos impacto. Daí, a ideia de caminhar no mar com água pela cintura. Neste terceiro ritual, o parceiro se chama Vinicius, meu filho de 11 anos. Uma história para outro caminho literário. <br /><br /> Não sou exemplo. Detesto e me policio contra a autopiedade. É uma questão de reforma mesmo, dentro e fora de “casa”. Dificilmente você me verá na rua, mas pode imaginar que carrego uma placa invisível pendurada no pescoço: “Homens e mulheres trabalhando”. Eles e elas – citados ou não –, que tentam me apontar o caminho da “cura”. <br /><br /><b> Obs.: Texto publicado na AT Revista (A Tribuna), em 14 de fevereiro de 2021.</b></span><div><span style="font-family: georgia;"><b><br /></b></span></div>Marcus Vinicius Batistahttp://www.blogger.com/profile/04617832464338308222noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4433712634824892213.post-41022154232637732102021-05-10T16:18:00.001-03:002021-05-11T12:56:39.454-03:00O ano que não terminou (Crônicas de uma epidemia # 35)<div><br /></div><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgDRlVaPkIEVfDQXiPDeBEJurhw1taAX3G-2NN40nDosds7iN43SGKt18yFsz1ASG2mZxjb9VaWjfIGmAUtLx5lIxF0xGEClUa122lpsYdpAmjoI4hDrRUYwZiThPnktARvSDkjqaAcBHYQ/s1920/year-5026133_1920.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em; text-align: center;"><img border="0" data-original-height="768" data-original-width="1920" height="160" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgDRlVaPkIEVfDQXiPDeBEJurhw1taAX3G-2NN40nDosds7iN43SGKt18yFsz1ASG2mZxjb9VaWjfIGmAUtLx5lIxF0xGEClUa122lpsYdpAmjoI4hDrRUYwZiThPnktARvSDkjqaAcBHYQ/w400-h160/year-5026133_1920.jpg" width="400" /></a><br /><br /><span style="font-family: georgia;"><b>Marcus Vinicius Batista </b><br /><br />Esqueça a matemática. Rasgue o calendário. A virada de ano foi, mais do que nunca, um ato simbólico. Uma alegoria que nos invade com duas ilusões até certo ponto tradicionais, mas que me soam definitivas neste final de janeiro. <br /><br /> A primeira ilusão, com jeito de blefe, é o fechamento para balanço feito loja de departamento. Fizemos contas, tentamos apagar parte das dívidas dos cadernos de contabilidade emocional, renegociamos outros débitos com nossos credores internos, prometemos nova política de vida. É um discurso, nada mais. Se vai virar prática, depende mais do marketing pessoal do que de atos concretos. <br /><br /> O outro truque – que desconfio ser pensamento mágico, mais nocivo do que cortina de fumaça – é o desenho do ano que chega. Aí escorregamos da escada e seguimos quicando nos degraus. O tamanho do tombo e dos ferimentos depende do quanto nossas fantasias nos dominam. <br /><br /> Não dá para acreditar que nossas fantasias ganharão corpo em 2021. Qualquer produtor de cinema a fim de ganhar um extra apostaria em 2020 versão estendida. Repeteco, mais do mesmo, aquele trecho que criança pequena assiste até a exaustão dos adultos. <br /><br />Tornou-se utópico estabelecer metas, fazer planos, construir estratégias, fomentar táticas diante de um começo de ano no qual erros crassos, mesquinharias e mediocridade social, temperadas com doses de truculência e irresponsabilidade, compõem o cardápio do dia. Cardápio com variações para colocar em xeque qualquer atestado de saúde mental. <br /><br /> Os políticos – obesos pelo voto, raquíticos em ações – viajam de volta à 5º série (hoje 6º ano), com suas picuinhas e empurra-empurra de valentões na hora do recreio. Só falta o xingamento de mãe e o aiaiai da molecada que torce pelo primeiro soco. Para os brigões, sobra oxigênio no palavrório na mesma proporção que o ar se torna rarefeito nas UTIs. <br /><br /> Na releitura de 2020, os comerciantes choram e contam moedas, paralisados com os horários que sofrem mutações mais aceleradas do que o Covid-19. Placas de aluga-se e vende-se se multiplicam como vírus de uma economia que adoece sem perspectivas de vacina. Aliás, já se fala numa terceira temporada desta série de (não)ficção científica para 2022. <br /><br /> No mundo fora dos gabinetes, o ano que não terminou sobrevive nas praias e estradas lotadas, nas máscaras que decoram bolsas ou se escondem em bolsos para negar, amenizar, passar o pano ou qualquer outra expressão para um comportamento que não é saudável. <br /><br /> A vida permanece online ou reclusa para quem pode ou se vê na esperança de se proteger. A vida permanece arriscada para quem necessita – diante de um salário também sob risco – lidar com a loteria de uma doença que não tem expressão facial. <br /><br /> A grosso modo, desenham-se duas exceções nesta reprise de filme de fim de noite. A primeira é real na aparência e falsa na essência. São aqueles que defenderam a pandemia inexistente. Quando internados, fingiram amnésia para agarrar com unhas, dentes e carteiras a vacina, de qualquer canto, desde que injetada no próprio braço. Na essência, o comportamento de sempre, que ultrapassa os anos. </span><div><span style="font-family: georgia;"><br /></span></div><div><span style="font-family: georgia;">Prefiro a segunda exceção. Acompanhar o cotidiano de quem viu neste capítulo inacabado da História um chance de se relacionar melhor. De viver melhor com os outros. De sobreviver para ver a próxima página, ainda sem prazo para ser escrita. <br /><b><br /><br />Obs.: Texto publicado na AT Revista, em 31 de janeiro de 2021.</b></span></div><div><span style="font-family: georgia;"><b><br /></b></span></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div><br />Marcus Vinicius Batistahttp://www.blogger.com/profile/04617832464338308222noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4433712634824892213.post-39820343231359224592021-05-07T22:35:00.004-03:002021-05-07T22:35:36.693-03:00O amor de uma vida (Contracapa #46 ou Crônicas de uma epidemia #34)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhlbVn3cRoxsGRzYyUEOaSIqnY2UmzsHaukix72yULA-JKsx7DzNkdv93_J-G7YMPfJ_-_IR27SP5ArxIRCtJA4Dn0CViaB8JKQsHn-Vj8dyv4u1-npKEz4iKC8QL8E7klVdkgKUrID8YTj/s1040/WhatsApp+Image+2021-05-07+at+22.00.32.jpeg" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1040" data-original-width="585" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhlbVn3cRoxsGRzYyUEOaSIqnY2UmzsHaukix72yULA-JKsx7DzNkdv93_J-G7YMPfJ_-_IR27SP5ArxIRCtJA4Dn0CViaB8JKQsHn-Vj8dyv4u1-npKEz4iKC8QL8E7klVdkgKUrID8YTj/w225-h400/WhatsApp+Image+2021-05-07+at+22.00.32.jpeg" width="225" /></a></div><br /><span style="font-family: georgia;"><b>Marcus Vinicius Batista </b><br /><br /> Não me lembro quando foi a primeira vez que o encontrei. É bem provável, sem grandes surpresas ou reviravoltas, que tenha sido um presente dos meus pais. Lembro-me com clareza de ganhar, na sala do apartamento onde morávamos, novos exemplares do gibis (como se chamava na virada para os anos 1980) da Turma da Mônica ou da Disney, mas não me recordo dos meus primeiros livros. <br /><br /> Na escola, lia com prazer cada livro recomendado pela professora Luiza Helena, rigorosa na gramática, mas uma profetisa na Coleção Vaga-Lume, da editora Ática. Pouco antes da pandemia, reli dois deles – “O Escaravelho do Diabo”, de Lucia Machado de Almeida, e “O Cadáver ouve rádio”, do Marcos Rey – emprestados pelo Alfredo Bouzas, amigo de infância e também formado no mesmo ritual literário. <br /><br /> Passei a comprar livros com voracidade depois que fui estudar Jornalismo, aos 17 anos. Brincava com minha mãe, que perguntava se eu daria conta de ler tudo; logo ela, uma leitora consistente, de quem guardo diversas obras do extinto Círculo do Livro, o avô dos clubes atuais de leitura. Eu respondia que poderia gastar meu dinheiro com drogas pesadas, em vez de livros. De certa forma, o fiz. Hoje, sei o quanto vale uma leitura viciante ou um livro que nos entorpece. <br /><br /> Nunca imaginava que poderia trabalhar com livros. Caíra na armadilha que ainda envolve muitos leitores, a de que os livros são vacas sagradas, que devem ser admiradas, jamais tocadas. A vaidade em torno da literatura – principalmente de muitos escritores – é estimulada pelo leitores, claro, mas a responsabilidade é de quem os escreve, nunca do livro. <br /><br /> Cheguei a ter, por volta de 2010, 2012, mais de dois mil livros. Além disso, acumulava revistas, jornais que um dia poderia ler, feito aquela desculpa esfarrapada a respeito da roupa que talvez seja usada no casamento daquele primo distante (e que provavelmente não vai formalizar um matrimônio). <br /><br /> A partir de 2015, iniciei o programa de redução de vida. Não é uma filosofia minimalista, mas a busca pelo essencial. Doei livros para alunos, presenteei amigos, colegas, conhecidos. Mesmo assim, continuei com 11 prateleiras e duas estantes. Sigo com livros em todos os cômodos do meu apartamento. O número de obras é bem menor. <br /><br />A fase atual é de mudança. As prateleiras diminuíram e serão vendidas, inclusive. A meta é manter somente as duas estantes, incluindo os livros dos meus filhos. Os livros que não couberem encontrarão seus leitores em outro canto. <br /><br /> Aprendi, com o tempo, que os livros devem buscar seus leitores. Como dizia minha avó, para todo pé sujo existe um chinelo velho. Assim, os livros começaram a voar das prateleiras. Presentes, doações, vendas. É mais um capítulo de um caminho onde sempre um livro me acompanha, na praia, no ônibus, no médico, na sala de aula, no avião, até na fila do banco. Quem está adormecido na prateleira merece outra trajetória. <br /><br /> Leio todos os dias, mesmo nos piores momentos da pandemia, quando a concentração falha. Escrevi livros e, atualmente, tenho o prazer de revisá-los, editá-los, publicá-los. O livro, meus amigos, é um caso de amor e um alívio para a dor, o sofrimento e a saudade. O livro sempre nos salva! <br /><br /><b>Obs.: Texto publicado na AT Revista (A Tribuna), em 17 de janeiro de 2021.</b></span><div><span style="font-family: georgia;"><b><br /></b></span></div>Marcus Vinicius Batistahttp://www.blogger.com/profile/04617832464338308222noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-4433712634824892213.post-58490064175791228072021-05-06T16:11:00.007-03:002021-05-06T16:11:55.075-03:00Promessas e listas (Crônicas de uma epidemia # 33)<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhN82XwFbj9YK4sJnV5bAjwUpzEerJze16WFrhKQPt1RM1LaiGa9_VumF0A22TuLgyprl-25F0QNS2YBYpeJlJxaQpZhdikxIqOFsossbd2vbA0PHfrxmEzd0q_4AMi_ol3S8pHg7caQ487/s1920/love-locks-2901687_1920.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em; text-align: center;"><img border="0" data-original-height="1243" data-original-width="1920" height="259" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhN82XwFbj9YK4sJnV5bAjwUpzEerJze16WFrhKQPt1RM1LaiGa9_VumF0A22TuLgyprl-25F0QNS2YBYpeJlJxaQpZhdikxIqOFsossbd2vbA0PHfrxmEzd0q_4AMi_ol3S8pHg7caQ487/w400-h259/love-locks-2901687_1920.jpg" width="400" /></a><span style="font-family: georgia;"><br /><br /><b>Marcus Vinicius Batista </b><br /><br /> Em tempos de negacionismo, terraplanismo e outros delírios coletivos, promessas e listas de final soam como conto de Papai Noel. São inofensivas, previsíveis, peças de entretenimento, porém não há maior mentira deslavada – e consciente – de que fazer promessas e listas para o próximo ano. <br /><br /> Elas são primas das listas de amigo secreto (ou amigo oculto). Servem para divertir, não deveriam ser sérias, funcionam como adereço na confraternização de final de ano. Se encaradas como dogmas, como tábuas de salvação ou resgate da alma, do bolso, do corpo ideal, elas tendem a prolongar o ano de 2020 no seu efeito decepção. <br /><br /> Promessas de final de ano são piores do que promessas de campanha eleitoral. Costumam ser mais espalhafatosas, mais próximas da ficção científica, de um futuro tão tão distante. Não beneficiam sequer o autor da promessa, que – em vez do político – vai se torturar com o fracasso. O político, quando promete, tem ciência da inutilidade das palavras. Na promessa de final de ano, o crente é exatamente isso: um esperançoso porque crê, mesmo que idolatre um pensamento mágico. <br /><br /> A lista, como documentação da promessa, não tem valor legal. Não engana nem criança, que dá mais valor para a carta de Natal. Também não adianta registrar em cartório com firma reconhecida. O autor está fadado a reproduzir o constrangimento daqueles candidatos que foram ao cartório e depois negaram – na cara-de-pau – que disseram, escreveram ou gravaram quaisquer mensagens. Guarde a lista na cabeça; assim, pode negar a existência dela ou fraudar seu conteúdo, de acordo com os resultados obtidos. <br /><br /> Diante de 2020, com diversas pontas soltas, a sensatez indica não se preocupar com resultados ou metas. Talvez seja melhor que Iemanjá as leve embora. Promessas e listas ficam mais palpáveis no palavrório dos gurus corporativos. Pertencem ao cardápio da ilusão. No “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”, é mais confortável observar de distância segura e acenar com sorrisos. Se quiser levar a fundo, aproveite e reverta o discurso: se algo der certo ou funcionar, você quem desejou, não o guru que recomendou. <br /><br />Não adianta pular sete ondas e depositar flores no Atlântico. Com a praia lotada, você pode receber de volta o Covid que tanto finge recusar. Finge porque qualquer um com passagem por este planeta sabe dos riscos em aglomerações, ainda mais no réveillon. Também não adianta guardar romã na carteira, comer lentilha ou vestir branco. <br /><br /> Crer no místico, no além, no transcendente, nas superstições, como você queira chamar, representa uma terceirização do que você precisa fazer. Essa barganha, sejamos francos, é desleal. Uma das partes – quase sempre você! – não precisa se mexer. O ônus pertence ao abstrato. <br /><br /> Se me permite uma sugestão, mantenha uma promessa para o próximo ano. E essa promessa seria o único item da sua lista. Lembro-me, neste caso, de um tio octogenário. Um sujeito íntegro, que alcançou o topo na vida e poderia se banhar de arrogância. Ciente da sua humanidade e, portanto, de como pode ser falho, ele disse em tempos recentes num arroubo de franqueza: “Só quero ser alguém melhor.” <br /><br /> A frase pode até ser clichê, mas – numa época de negacionismo e delírios coletivos – nada melhor do que voltar ao básico. E com outra vantagem: “ser melhor” pode ganhar inúmeros sentidos. Depende de nós. <br /><br /><b>Obs.: Texto publicado na AT Revista (A Tribuna), em 3 de janeiro de 2021.</b></span><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div>Marcus Vinicius Batistahttp://www.blogger.com/profile/04617832464338308222noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4433712634824892213.post-1452658361031963612021-05-05T15:37:00.002-03:002021-05-06T15:58:48.692-03:00Exaustos (Crônicas de uma epidemia # 32)<span style="font-family: georgia;"><br /></span><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgsSl1kOb4qYl0rj6ETkkgUoVTXX1F9EmNiB-KgE_hhEiDXwtLpJmJHwLFCc5UKr3TQSFwRRoCO3RQpY6MK4JV8xQZDWHcagq51oxQ0k9ntV0SFJJtR_QipGyjYq5mysqpMYKAkqz7pbV9o/s1280/ant-44588_1280.png" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em; text-align: center;"><img border="0" data-original-height="1160" data-original-width="1280" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgsSl1kOb4qYl0rj6ETkkgUoVTXX1F9EmNiB-KgE_hhEiDXwtLpJmJHwLFCc5UKr3TQSFwRRoCO3RQpY6MK4JV8xQZDWHcagq51oxQ0k9ntV0SFJJtR_QipGyjYq5mysqpMYKAkqz7pbV9o/s320/ant-44588_1280.png" width="320" /></a><span style="font-family: georgia;"><br /><br /><b><br /></b></span><div><span style="font-family: georgia;"><b>Marcus Vinicius Batista </b><br /><br />Estou cansado. Não é um cansaço comum, que oito horas de sono remediam sem dificuldades. É uma espécie de exaustão pandêmica, contagiosa, de imaginário e vida coletivas. <br /><br />Em nove meses (hoje, quase 14), é possível conhecer a fundo o cardápio de sintomas que caracterizam este morde e assopra de queimar energias. É um desgaste integral, holístico, no qual os caminhos de entorpecimento se revezam na tarefa de sugar forças. Sinto-me como se diversas sanguessugas se alternassem com suas ventosas em minhas costas. Todas conspirando para fraquejar o hospedeiro, sem derrubá-lo de vez, de mantê-lo esperançoso antes do golpe seguinte. <br /><br />Às vezes, peço pelo cansaço físico, aquele de fácil identificação via dores musculares, passíveis de analgésico, repouso, banho e chá revigorante. Uma boa refeição e uma conversa com quem se ama fecham o pacote de regeneração. <br /><br />Quando o cansaço é emocional, consigo detectar o que me aflige, peço ajuda a quem confio e opto pelas atividades que me permitem descansar dos problemas internos. Um bom livro, escrever, assistir às histórias consistentes nas séries e filmes são pílulas de vitaminas, num coquetel capaz de afastar as viroses de sentimentos que podem ser tornar patogênicos. <br /><br />A exaustão pandêmica comprime as duas versões anteriores num formato de difícil diagnóstico. Esta exaustão alcança não somente o indivíduo, mas conecta o sofrimento dos amigos, parentes e até pessoas com relacionamentos mais distantes. Ela não permite união para a resistência, ela divide para conquistar, ela isola para massacrar. <br /><br />A exaustão se esconde nas entrelinhas do home office, nas curvas da vida online, nos algoritmos das redes sociais, onde podemos testemunhar o pior do humano, o mais ilusório dele. O sorriso da perversidade. <br /><br />A exaustão nasce no mundo lá fora, se aloja em nossos ambientes, altera nossa percepção como se fôssemos tolos por tentar sobreviver à pandemia como se ela existisse. E existe! <br /><br />Estou cansado dos que se deleitam na negação que esconde o pavor, que camufla o egoísmo, que cultiva a intolerância e semeia a truculência. Estou cansado dos irresponsáveis que celebram – desconfio que com consciência – a desgraça alheia, que ignoram os velórios, a ausência do direito ao luto, a dor de quem se deita amarrado por tubos médicos, de quem espera por mais um abraço, um beijo e se apavora a cada boletim da saúde que o vírus corrói. O vírus faz o que nasceu para fazer. As criaturas que o negam escolhem a crueldade. <br /><br />A exaustão nos deixa, de certo modo, impotentes. Não tenho a presunção de alterar comportamento de ninguém. Preocupo-me com meu quintal e as flores que me fazem levantar na manhã seguinte e persistir. O problema é que se tornou impossível ignorar as ervas daninhas – com mandato ou sem -, que gargalham na mesquinharia e na ganância. <br /><br />Esses sujeitos sabem o que fazem. Quando cruzo com eles na calçada, onde não tem poder algum, esses seres abaixam a cabeça, num confissão de movimento corporal. É mais um momento em que penso em meus amigos com restrições financeiras, dificuldades emocionais, contando as moedas e as doses de energia para não sucumbir diante das estatísticas que teimam em subir e das histórias que insistem em se repetir nos hospitais e cemitérios. <br /><br />Estou cansado. Amanhã, vou me levantar como muitos que precisam continuar. Só não me peçam para respeitar quem prefere espancar a cidadania e a saúde alheias. Para esses, talvez não haja vacina, não a fabricada nos laboratórios, e sim a da decência. <br /><br /><b> Obs.: Texto publicado na AT Revista (A Tribuna - Santos), em 20 de dezembro de 2020.</b></span><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div><br /><div><span style="font-family: georgia;"><br /></span></div></div>Marcus Vinicius Batistahttp://www.blogger.com/profile/04617832464338308222noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4433712634824892213.post-56326668310402776772021-05-05T15:14:00.002-03:002021-05-06T15:58:38.907-03:00A moça amadureceu <p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg1NNw07PxCdET_6uQZ4MDIMkn4MbyicS9IUAYg8NLixq5-1sYlVKb4Oy9jbYQ_dhRGjKmVY3up4CCaY3Cw9rWuV5UjsEfjP9M9IQ4T__eUnUeQm5VCcwIUS2heSjqipFTNtwq_oD4ONxMy/s1296/6.+A+mo%25C3%25A7a+amadureceu+%25282%2529.png" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1242" data-original-width="1296" height="614" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg1NNw07PxCdET_6uQZ4MDIMkn4MbyicS9IUAYg8NLixq5-1sYlVKb4Oy9jbYQ_dhRGjKmVY3up4CCaY3Cw9rWuV5UjsEfjP9M9IQ4T__eUnUeQm5VCcwIUS2heSjqipFTNtwq_oD4ONxMy/w640-h614/6.+A+mo%25C3%25A7a+amadureceu+%25282%2529.png" width="640" /></a></div><br /> <p></p>Marcus Vinicius Batistahttp://www.blogger.com/profile/04617832464338308222noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4433712634824892213.post-37446129121551927982021-05-05T13:57:00.004-03:002021-05-05T13:57:46.483-03:00O corte<div class="separator"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi4vuayDuL2MqYpgEii5RHzscbzi8V8OP0URrBx7eSsKE06WUB4SLSt0RzoBy0lW_g-FV5D_6Jg0E4SNdOvTwgtT7gih8qld4EZMc4N3-a1D6OroLN1SxeZboxNlWM3L4VmQTLdimxzm0y7/s1280/WhatsApp+Image+2021-05-05+at+13.52.13.jpeg" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em; text-align: center;"><img border="0" data-original-height="1280" data-original-width="720" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi4vuayDuL2MqYpgEii5RHzscbzi8V8OP0URrBx7eSsKE06WUB4SLSt0RzoBy0lW_g-FV5D_6Jg0E4SNdOvTwgtT7gih8qld4EZMc4N3-a1D6OroLN1SxeZboxNlWM3L4VmQTLdimxzm0y7/s320/WhatsApp+Image+2021-05-05+at+13.52.13.jpeg" /></a></div><span style="font-family: georgia;"><br /><b>Marcus Vinicius Batista</b><br /><br />O corte é seco. O adubo se faz esterco. Diante do caminhante, às vezes me perco. E resolveu não fraquejar.<br /><br />O corte é profundo. Traz o grito moribundo. Um corpo que se desenha imundo. E escolheu ressuscitar. <br /><br />O corte sangra. Revela o quanto a pele engana. Demoli a carcaça de Cassandra. E decidiu se levantar. <br /><br />O corte arde. Julgou parecer covarde. Murmurou seu rumo sem alarde. E quis desacelerar. <br /><br />O corte passa. Paralisou na água escassa. Testemunhou como se fracassa. E voltou a respirar. <br /><br />O corte cicatriza. Se arrasta e não avisa. Desvia e não martiriza. E optou por caminhar. <br /><br />O corte cura. A jornada até a lonjura. Julgamento por frescura. E vai continuar.</span><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div><br /><div><span style="font-family: georgia;"><br /></span></div>Marcus Vinicius Batistahttp://www.blogger.com/profile/04617832464338308222noreply@blogger.com0