As chinelas (Crônicas além do quintal # 8)

Foto: Mari Amarante

Marcus Vinicius Batista

Calço número 44. Desde os 13 anos, estou acostumado a ter dificuldades para comprar qualquer coisa que se coloque nos pés. Quando penso em comprar um tênis, sapato, chuteira, desejo ter a coragem de Juca Chaves e andar o tempo todo descalço.

Aos 13 anos, a mudança aconteceu. Do dia pra noite. Numa madrugada. Havia comprado um tênis, no tempo em que bamba e kichute reinavam na classe média. Conga era para classe média baixa. Nike, para os ricos. Usei o tênis três vezes e dei de presente a um amigo. O pé virara 44.

Um dos meus desejos, não tenho tantos assim e não me mobilizo tanto por eles, era ter um par de chinelos de couro. Não se vende em lojas na cidade onde moro, Santos. O único lugar que encontrei foi numa dessas feiras de praça pública, em frente ao Sesc, na barraca de uma senhora migrante do Nordeste. Ela trazia os chinelos de lá.

Desisti do “sonho” e fiquei com minhas Havaianas (de outra marca) depois de meia dúzia de visitas. A senhora, em duas ocasiões, tentou me empurrar um par número 43, mas os calcanhares ficavam de fora. Diante da insistência, era educado e recusava a oferta. “Não tem saída”, ela sempre repetia.

O desejo dos chinelos de couro passou uns cinco anos adormecido. Até que aterrissei em Maceió para passar uma semana. Na primeira noite, tínhamos o aniversário da Syl, uma amiga que conhecemos em outra viagem. Quase no final da festa, um amigo dela se sentou do nosso lado. Ele estava com um par de chinelos de couro.

Pedi ao Leo, namorado da Syl, que me apresentasse o cara. Mal ele disse “muito prazer”, já perguntei sem enrolação: “muito legal esse chinelo, onde você comprou?”

Ele me agradeceu e disse que comprou numa feira de artesanato local, numa das praias. Avisei Beth, minha mulher, e o casal Syl e Leo que passaríamos por lá de qualquer jeito.

Não tinha o jogo ganho. Eu estava escaldado. Lembrei-me de quando comprei uma chuteira de futebol society, uns sete anos atrás. Foram nove lojas, em três bairros e dois shoppings. Na nona loja, depois de umas quatro horas de maratona, a vendedora me disse: “só tem um par. É esse aqui.”

“Não tem outra cor?”

“Não, só essa.”

Suportei duas semanas de piadas por jogar com uma chuteira branca e fios dourados, quase um gênio da lâmpada cujo desejo era ter uma chuteira preta, discreta, invisível.

Em Maceió, passamos mais cinco dias, e eu de olho nos chinelos. Em qualquer passeio, se houvesse uma venda, uma quitanda, um supermercado, uma barraquinha de produtos artesanais locais, eu entrava atrás dos chinelos. Nada. O mundo acabava no número 42. Só balançava a cabeça negativamente, olhava para o vendedor, para meus pés, e seguia em frente.

A indicação do sujeito que conheci na festa ficou para a última noite. Um jantar, um sorvete, mais bate-papo e o relógio alertou: falta menos de uma hora para fechar a feira. Na verdade, duas, uma de cada lado da avenida da orla.

Começamos pela feira do lado da sorveteria. Meia dúzia de tentativas, compra de lembrança para sogro, de objetos para casa ... e o desejo murchando outra vez. Ali era a tortura psicológica que se reforçava. O mundo, nesta versão, tinha a última página no número 41.

Eu, Beth, Syl e Léo, atravessamos a avenida da praia e fomos nas demais barracas, desta vez no calçadão quase pé na areia. Última oportunidade, pois o avião de volta para São Paulo decolava ao amanhecer. As lojas fechavam em meia hora.

Entramos pelo lado direito. Sete ou oito lojas depois, estaca zero. Muitos comerciantes fechando o caixa, lojas baixando portas. A feira reforçava o carma de seguir no universo dos chinelos Havaianas (e as marcas semelhantes).

Saímos da feira pelo lado oposto. Beth me olhava como se perguntasse: “achou?” Balancei a cabeça dizendo que não.

Perto de nós, um dos comerciantes estava sentado do lado de fora. Ele estava numa cadeira de praia, com uma latinha de cerveja na mão. Esperava os cinco minutos finais para passar o cadeado e descansar.

Olhei para o sujeito, balancei a cabeça para cumprimentá-lo e olhei para a loja dele. Chinelos de couro. Percorrei a vitrine com os olhos sem procurar por algo em especial. Quando desviei o olhar para as prateleiras de estoque, li: “44”. Olhei de novo: “45”. Um monte de chinelos embalados em sacos plásticos.

Virei-me para o sujeito e perguntei: “você tem chinelo de couro número 44?” Ele me observou da cabeça aos pés e, com preguiça, mas sem ser grosseiro, respondeu: “tenho!”

O comerciante entrou na loja e me deu um par de chinelos 44. Olhei para o Léo, que sorriu e me perguntou: “servem?”

“Puxa, é mesmo, preciso experimentar.”

Tirei os tênis e as meias ali mesmo e calcei os chinelos. Ficaram curtos. Sobrava calcanhar. Virei-me para Beth e fiz sinal que não. Ela atirou: “pede o 45”.

“Posso experimentar o número 45?”, perguntei ao lojista.

“Tenho sim.”

Era o número perfeito. Coube com precisão. Os três sorriam para mim. O comerciante esperava o dinheiro. Paguei o sujeito, calcei os tênis, peguei a sacola. “Você não vai com eles?”, alguém sugeriu.

“Não, agora não”, era como retardar o final de um livro, para saborear ainda mais a expectativa de vitória.

Chegando no apartamento, coloquei novamente os chinelos de couro. O conforto em forma de artesanato. Beth me disse: “bonitas chinelas. Bonitas mesmo.” Desfilei pela sala, como se encerrasse a Maceió Fashion Week, versão particular.

Chinelas, repetimos até hoje, é como meu filho Vini as chama, no feminino, do jeito que se habituou a falar quando morou no Nordeste. Seja de couro, seja do Ben 10, como as que ele calça.

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