Amor por amor, dente por dente




Marcus Vinicius Batista

Era a primeira viagem do casal. Se considerarmos que ele trabalhava em São Paulo e ela morava em Santo André e que tinham se conhecido em Ouro Preto numa turma, o final de semana na pousada de São Roque era o primeiro momento juntos.

Para ele, a viagem significava “vai ou racha”. Ele estava apaixonado e pretendia impressioná-la, uma mulher centrada, tão lutadora quanto o anfitrião. Dali tinha que sair um namoro. Ele sonhava até com casamento.

Chegaram numa sexta-feira à noite, descansaram um pouco, deram uma volta para conhecer o lugar, num clima romântico cercado por natureza, silêncio e o ar anti-paulistano. Mais tarde, viria o jantar, com vinho e aquela massinha pré-noite de amor.

Enquanto bebericavam o vinho, comiam a salada com lentidão. Tinham sempre muito o que conversar, marca desde que se conheceram no interior de Minas e no primeiro encontro, em São Paulo. Os diálogos reforçavam as afinidades, relativizavam quaisquer diferenças e construíam um relacionamento com sentimentos múltiplos e recíprocos.

Antes do prato principal, ele se preparou para sorrir. Aquela preparação que consiste no caminho da língua por todos os espaços da boca, o improviso na ausência do fio dental, na indiscrição do palito.

Quando passou a língua nos dentes da frente, sentiu uma diferença. Resto de alface? Um pedaço de tomate? O vinho tinha reduzido a sensibilidade, o que confundia a percepção sobre qual alimento insistira em resistir ao destino da digestão.

Os dois conversaram sobre amenidades e ele procurava descobrir o que o incomodava, o que permanecia grudado nos dentes da frente. Era essencial, decifrar o enigma, já que impedia um sorriso, uma gargalhada, todas as manifestações de humor numa conversa sempre divertida.

Ele não aguentou, pediu arrego a si mesmo e perguntou pra ela: “Tem alguma coisa no meu dente?”

Ela respondeu sem pensar: “Então, não tem.”

“Como assim, não tem?”

“Não tem nada, não tem dente.”

Metade de um dos dentes da frente tinha desaparecido. Ele passou a mão na boca e descobriu: era o dente remendado, fruto de uma pedrada que levara do irmão mais velho quando era criança. O dente – ou parte dele – sumira.

Ele procurou de novo com a língua. O pedaço de dente poderia estar em algum canto. Nada. Então, caíra no prato, na mesa ou ao lado. Olhou em todos os lugares, até embaixo da mesa. Sem sinal do amigo. Olhou para ela e deduziu que poderia ter engolido.

Os dois caíram na gargalhada. Riam tão alto que o maître, ao trazer o jantar, perguntou se havia algum problema. O rapaz explicou e, ao explicar, mostrou a prova, desmaterializada em um buraco na frente.

O maître, sensibilizado, sugeriu procurar um dentista que fizesse o conserto. Ele olhou para ela, que não parava de rir, e respondeu: “Olha, deixe pra lá. O final de semana ainda tá começando e já tô sem dente. Se ela ficar comigo depois dessa, nessa pousada, a gente se casa.”

Não sei onde ele procurou um dentista e como foi o resto daquele final de semana, em São Roque. Sei que foi procurar ajuda na volta da viagem. Dois anos depois, os dois se casaram, tiveram um filho – hoje com quatro anos -, mudaram de cidade, abriram um comércio e vivem com tranquilidade.

O dente novo, se ele não me contasse a história, seguiria imperceptível e sem provocar risadas.

Obs.: Texto publicado no site Jornalirismo, em 24 de novembro de 2016.

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