Carta à filha

Marizica, uma menina de olho no horizonte

Marcus Vinicius Batista

Quando um texto é difícil de atravessar a fronteira entre o sentimento que o originou e a racionalidade que o levará ao papel, minhas reações se resumem a uma palavra: enrolação. Estou a duas semanas para te escrever. 15 dias maturando ideias que morrem e ressuscitam para falecer outra vez. Tombam de inanição, de anemia por isolamento, de covardia por expor o que se sente com tamanha profundidade.

A pressão do prazo, algo que estou acostumado como jornalista, prevaleceu como o empurrão para escrever. Os sentimentos tem que sair pelos poros, pelas lágrimas ou pela ponta dos dedos. Não sei se acabarei por repetir o que te disse numa carta manuscrita e entregue como presente pelo seu aniversário, pela ausência que se aproximava como o maior dos escândalos.

A ausência não é mais barulhenta. A saudade vem quieta, em passos de difícil percepção e se aninha na cama na hora em que vou dormir. Fico sem saída, com algemas invisíveis que me mantém deitado. Durante o dia, preencho a cabeça com o trabalho, a arte, as pessoas, as experiências mínimas do cotidiano. Pedalo, ando, lavo louça, os exercícios mecânicos que levam minha mente para longe.

À noite, o ritmo do pensamento se altera, perde velocidade e se torna único quando minha cabeça se projeta em direção ao travesseiro. A falta que sinto de você, filha, ao longo do dia, se transforma em melancolia naqueles minutos que antecedem o sono.

A intensidade varia de acordo com o estado físico, mas não é incomum resultar em insônia. Curo a saudade com um livro ou uma crônica de próprio punho. Sou grato aos livros e aos escritos pela missão de me manter saudável.

A saudade, filha, tem dois lados. Ela pode ser benéfica quando o reencontro se avizinha. Ela se mistura com ansiedade, com a alegria em construção, com as horas que pulam em direção ao desejo do tempo. O resultado final é o abraço aperto que apaga os espinhos da trilha.

A saudade, por outro lado, é remoer o sofrimento da falta, quando a pessoa que nós amamos está longe e assim permanecerá por mais algum tempo. A saudade é implacável com a imobilidade que a vida pode nos proporcionar. Deitado na cama, me sinto imóvel, mais do que fisicamente, me sinto imóvel porque a falta se repetirá no dia seguinte. Não conviver é impossível de definir.

Não consigo me acostumar e descartei qualquer hipótese de que isso aconteça algum dia. O tempo que passamos juntos, filha, é tão intenso que contradiz as experiências sem você. Como observar você dormindo? Como acompanhar suas leituras, seus jogos, suas amizades? Como testemunho seus acertos e erros? A tecnologia ameniza a distância, mas materializa a edição do contato.

Escrever para você não é se lamentar. Não me entenda mal. Escrever é exorcizar o que sinto, de dentro para fora. É traduzir o que muitos esquecem ou não veem. Você me ensinou pilhas de lições, mas uma delas me transmitiu à revelia, de modo involuntário.

As melhores vivências são as cotidianas, as que se acredita serem insignificantes ou mínimas. Te levar no inglês e esperar na praça ou no banco da igreja. Almoçar num restaurante qualquer e compartilhar o que aconteceu pela manhã. Te levar ao futebol e assistir ao treino (o único momento em que corrigir provas é um ato prazeroso). Conversar contigo enquanto caminhamos por quadras e quadras. Ouvir seus relatos adolescentes da escola, um mundo que tinha ficado para mim no século passado.

Eu cultivo e rego as situações que vivemos juntos para podar as que não posso acompanhar. Não sofro pelo que não posso viver. Procuro domar a saudade pelo desejo de repetir as páginas que convivemos. Ser seu pai é difícil de descrever quando os olhos inundados embaçam a tela do computador.

Ser seu pai é aprender via Skype, whatsapp, celular e ao vivo. É o entendimento de que, por mais que existam degraus funcionais entre pai e filha, a escada representa um caminho flexível, de subida e de descida para que estejamos no mesmo patamar.

Passei a entender que o Dia dos Pais não é data para ganhar presentes (claro que você pode me mandar uma lembrancinha!). Não é ato consciente, é o desaparecimento desta ideia como parte da celebração. Deixei de pensar no que desejaria ganhar. Já ganhei você e seu irmão. Isso se tornou absoluto depois da mudança de vocês.

Ganho a cada vez que você e Vini se lembram de mim. Que destinam alguns segundos para responder uma mensagem. Quando perguntam se está tudo bem, o que ando fazendo. O trivial mudou de figura. A sensibilidade recebeu outra denominação. Minha vida mudou tão rápido que se fez obrigatória e perceptível. 

Um homem, aos 4 anos, na estica ... e bravo

Filha, este texto precisa ser concluído. Não porque as palavras pedem final. Tenho muito a dizer a vocês, sempre. E ouvir. E aprender. E dividir. Este texto, ao contrário da maioria dos meus escritos, está nascendo aos solavancos, aos saltos, com intervalos para olhar os gatos, a válvula de escape mais à mão, ou para usar encharcar o guardanapo do café da manhã como lenço de emergência.

Filha, saiba que - não posso explicar como - estarei sempre ao lado, como um espírito que flutua em vida. Quando se lembrar de mim, olhe para o lado, para frente ou para trás. Estarei ali, no afeto da memória, contente pela experiência que vivemos juntos. A distância, e tem que ser assim como conforto, significa circunstância.

Apenas o amor esmaga a saudade, mesmo que como remédio temporário. Fique bem. Te amo muito. Beijoca, Marizica. Seu pai!

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